Enviado por Juliana Urano:
Utopia pós-moderna, “A saga de um
andarilho pelas estrelas” conta a história de um homem que abandona a Terra e
viaja pelas estrelas, onde conhece civilizações extraordinárias. Mas o universo
guarda infinitas surpresas e alguns planetas podem ser muito perigosos. O
enredo é repleto de momentos cômicos e desconcertantes que acabam por inspirar
reflexões sobre a vida e a existência. O livro é escrito em prosa em dez
capítulos. Oito sonetos também acompanham a narrativa. (Editora Multifoco)
Disponível no site da Editora Multifoco, Livraria Cultura, Livraria da
Travessa, Cata Preço.
Andarilho da estrela cintilante
Por onde vai sozinho em pensamento,
Fugindo dessa terra de tormento,
Sem paradeiro certo, triste errante?
E procurar o que no firmamento,
Que aqui não encontrou sonho distante
Nenhum outro arrojado viajante?
Volta! Nada se perde com o tempo...
“Felicidade quis, sim, encontrar
Nesse vasto universo, de numerosas,
Infinitas estrelas, não hei de errar!
Mas ilusão desfez-se em nebulosas,
Tão longe descobri tarde demais:
Meu amor deste lugar partiu jamais!”
PARTE 1
N
|
um amplo salão azul, de uma única porta
cor de abóbora e nenhuma janela, muitos jornalistas se amontoavam.
- Por favor,
conte-nos como foi sua viagem ao espaço?
- Diga-nos como ficou
tanto tempo sem comida e água?
- Disseram que você
não se alimenta. É verdade?
- E o relógio? Por
que você não se separa de um relógio?
- Como foi viajar
pelas estrelas?
- Me desculpem, mas
eu preciso fazer um apelo à humanidade.
- Apelo? Depois o
senhor faz. Responda primeiro às nossas perguntas.
- Eu preciso contar a
todos o que eu vi. É muito importante.
- Haverá muito tempo
para isso. As autoridades estão preparando para amanhã a ocasião para que você
dê uma declaração pública, que será em praça pública e transmitida para todo o
mundo. Mas antes nos responda!
- As autoridades,
sempre as autoridades! Por que não me deixam falar logo de uma vez! Começo a
duvidar de que as autoridades estejam sendo sinceras.
- Você acabou de sair
da quarentena. Depois dessa entrevista, você terá sua chance de falar o que
você bem entender para a humanidade. Por isso, conte-nos agora como foi sua
viagem pelo espaço. Além do mais, tudo o que você disser será publicado e
televisionado!
- Você disse tudo o
que eu falar será publicado e televisionado?
- Sim. E ao vivo!
- Bom, então eu
respondo. O que vocês querem saber?
- Tudo. Tim-tim por
tim-tim.
- Então, sou todo
ouvidos.
- Desde que voltou ao
planeta Terra, você se tornou muito famoso. O que você acha das pessoas que se
manifestaram por sua liberdade.
- Eu queria
agradecê-las.
- Sim, você é muito
popular, pensa em se candidatar a algum cargo político?
- Não, de modo algum!
- Desculpa-me, mas
farei uma pergunta um pouco indelicada. Você é mesmo um ser humano?
- Em partes. Depende
do que você entende por ser humano. O que é um ser humano?
- Como assim, o que é
um ser humano? Um ser humano é um ser... é um ser... é um ser humano! Sei lá,
um indivíduo pertencente à nossa espécie... Na verdade, gostaria de saber se
você é daqui ou se é um alienígena, essas coisas... Você é da Terra, um
terráqueo como nós?
- Tudo indica que
sim, até que me provem o contrário. Sou um terráqueo, porque nasci na Terra.
- Qual é o seu nome?
- Por favor, sou
apenas o Andarilho das Estrelas.
- Andarilhos das
Estrelas?!
- Sim. Sou um
andarilho, das estrelas.
- Você não tem nome?
(Todos riem).
- Não importa, sou o
Andarilho das Estrelas apenas. E isso é tudo o que vocês devem saber sobre mim.
O Universo é maior.
- Disso ninguém tem
dúvidas. (Risos). Como é então lá em cima, no Universo?
- Lá em cima? O
entrevistado fez um gesto de incompreensão, e depois acrescentou: O senhor já
viu estas fotos coloridas de nebulosas, galáxias, supernovas etc., tiradas por
telescópios espaciais?
- Sim.
- Eu diria que é
muito mais maravilhoso.
- É mesmo? E o que
você viu de tão maravilhoso, exatamente?
- É difícil dizer o
que é mais maravilhoso. Tudo é muito bonito. Para não deixar você sem resposta,
eu diria que as imensas cataratas de estrelas cadentes são lindas demais. No
entanto, como não mencionar a música que toca entre as estrelas ou os versos do
multiverso?... Na verdade, é difícil escolher o mais maravilhoso. Lamento, sua
pergunta não pode ser respondida.
- Ainda não entendo
qual o problema de falar seu nome? Afinal, todos nós queremos chamar você por
seu nome!
- Que importa um
nome? Eu continuaria o mesmo independente do nome que tenho. Além disso, a
minha vida aqui na Terra, como a da maioria das pessoas, sempre foi tão vulgar
e encoberta pelo anonimato das multidões, que meu nome é também indiferente. A
diferença é que um dia eu deixei nossa querida Terra para viajar pelo espaço
sideral. Então eu me tornei um andarilho, errando pelas estrelas do Universo.
Vejam bem, por que vocês jornalistas, ciosos que são, estão me entrevistando?
Qual o interesse das emissoras de televisão, que pagam os seus salários, senão
fatos? Não é sobre mim que vocês querem saber. É sobre o Universo.
Sinceramente, a vida banal de um cidadão comum não vende jornais.
- Antes dessa sua
viagem espacial, você já havia viajado muito por outros lugares do mundo?
- Não. Nunca saí de
minha cidade.
Todos os jornalistas,
que eram centenas, se admiraram com essa resposta.
- Nunca saiu de sua
cidade?
- Nunca.
- E por que saiu do
planeta?
Essa pergunta
provocou risos também.
- Porque eu quis
abstrair de mim a minha humanidade, ou melhor, quis me tornar abstrato.
A resposta do
Andarilho das Estrelas provocou uma reação de surpresa e incompreensão.
- Me perdoa, mas não
entendi o que você quis dizer. Como assim, se tornar abstrato? Isso não faz
sentido. Em primeiro lugar, o que você entende por “abstrato”?
- Ora, o sentido que
se dá a palavra abstração, isto é, um elemento reduzido, separado, e que é
generalizado.
- O quê? Por favor,
explique melhor, está muito confuso.
- Significa abstrair
de uma abstração...
O embaraço aumentava
conforme o Andarilho das Estrelas respondia as questões dos jornalistas ávidos
por notícias e não por respostas demasiadamente vagas. Afinal, quem é este
Andarilho das Estrelas? Ele esteve onde nunca nenhum outro ser humano sonhou um
dia chegar e ainda assim não sabemos nada sobre ele, nem o seu nome. Depois
justifica uma viagem sem precedentes históricos e de proporção interplanetária
com uma explicação, no mínimo, sem sentido!
Analisemos mais
detidamente a fisionomia desse estranho personagem para ver se descobrimos
algum traço notável de sua personalidade. Aparentemente, nada indica algo
incomum nele. Porém, se prestarmos bastante atenção em seu olhar... No seu
olhar pode se observar alguma coisa do Universo, um pouco do brilho das
estrelas, uma substância, talvez, de origem melancólica, o próprio éter, cuja
essência infinita é o imponderável.
De fato, nenhum dos
jornalistas duvidava de sua jornada no espaço; sobretudo, quando os telescópios
detectaram sua presença no limiar do sistema solar em rota direta de colisão
com a Terra. Notícia alarmante, que provocou verdadeiro pavor, porque o
Andarilho das Estrelas foi inicialmente confundido com um asteroide. Quando,
entretanto, os astrônomos declararam que o corpo celeste detectado não era
senão um corpo humano, o mundo então respirou aliviado. Na ocasião, inclusive,
um cientista saiu de um observatório dançando e pulando tão enlouquecido, que
acabou por cair em um bueiro de esgoto que alguém imprudentemente esqueceu
aberto. Para sua felicidade, os ferimentos foram leves. Mas passado o susto
inicial da confusão com um asteroide, o mundo inteiro se perguntava intrigado
como podia um ser humano estar nos limites do sistema solar. As hipóteses se
multiplicavam. Alguns questionavam, não sem fundamentos, se o Andarilho das
Estrelas não seria antes um extraterrestre. Alarmados, outros anunciaram uma
invasão alienígena iminente. E os adeptos das teorias da conspiração afirmavam
que o caso expunha provas concretas de um experimento científico realizado com
cobaias humanas lançadas ao espaço e desenvolvido por organizações que
almejavam dominar o mundo. Logo, sabichões de todos os cantos do planeta se
reuniram emergencialmente num congresso internacional onde passaram a discutir
e analisar as evidências por dias a fio. Por fim, vieram a publico apresentar
suas conclusões. Declaravam que, em primeiro lugar, “o objeto espacial que se
localiza nos confins do sistema solar é realmente um ser humano do gênero e da
espécie homo sapiens sapiens” e, em segundo lugar, “que
ignoravam completamente como um indivíduo da referida espécie havia parado num
ambiente inapropriado à vida humana”.
Ao se aproximar o
Andarilho das Estrelas da estratosfera terrestre, o resgate não podia causar
mais comoção. Maravilhado, o mundo inteiro parou para assisti-lo entrar na
Terra como uma estrela cadente, riscando o céu de ponta a ponta num rastro
luminoso para, em seguida, descer suavemente no mar. A operação de busca, que
se procedeu, assemelhou-se a uma verdadeira mobilização de guerra. Nunca se viu
tantos helicópteros, jatos, tanques, navios porta-aviões e tantas outras
geringonças juntas rumando para um só lugar. As emissoras de televisão
suspenderam toda a programação diária para noticiar integralmente o
acontecimento extraordinário. Nos telejornais, os repórteres relatavam o
sucedido: “Nesta manhã, o homem que estava no espaço aterrissou sem maiores
transtornos no meio do oceano Pacífico e foi resgatado para a terra em
segurança”. Outros reportavam a seu estado de saúde: “O homem do espaço passa
bem, apesar de visivelmente abatido”. E alguns descreviam sua aparência: “Ele
tem barbas longas, cabelos compridos e desgrenhados, roupas puídas e
rasgadas... mais parece um náufrago, um náufrago das estrelas”. Notícias como
essas se intercalavam ao longo das horas, ininterruptamente, e, no dia
seguinte, a humanidade ainda estava de ressaca pelos acontecimentos da véspera.
Finalmente, a fisionomia do Andarilho das Estrelas, com expressão assustada e
olhos esbugalhados, estampou, numa foto memorável, a primeira página dos
grandes jornais do mundo inteiro.
Neste ínterim, uma
agência secreta de algum governo deteve o Andarilho das Estrelas e o
transportou para uma dessas bases ainda mais secretas, onde o submeteram a
intenso interrogatório. De acordo com informações extraoficiais, o viajante
espacial portava consigo apenas uma bagagem de mão, com alguns pertences
pessoais, como um livro, um caderno, um espelho, uma lanterna, uma caneta e uma
bituca de cigarro, além de uma estranha máquina portátil, construída com uma
tecnologia desconhecida, e que foram expostos a testes de radiação. Depois
disso, durante dias não se teve notícias dele. E as pessoas movidas, talvez,
pela curiosidade, passaram a se interrogar por que o prenderam e não o
soltavam. Nas ruas, na linha de produção, nos escritórios, nas escolas, nos
botecos, nos restaurantes, nas casernas, enfim, na sala de jantar, todos
queriam saber do paradeiro daquele que ocupou por um curto lapso de tempo a
atenção do planeta. Mesmo diante de tanta repercussão, a tal agência secreta
mostrava-se irredutível à opinião pública e sonegava a menor informação.
Entretanto, estava em andamento um fenômeno sociológico inexplicável – do qual
será explicitado adiante – que foi decisivo para a libertação condicional do
Andarilho das Estrelas. Aliás, decisão bastante ardilosa, pois, diante do
silêncio do prisioneiro, a agência secreta poderia obter as informações, por
meio da imprensa e de uma declaração pública, desejada pelo próprio Andarilho
das Estrelas, que em vão tentavam pela força.
E aqui chegamos ao
salão azul, com uma porta cor de abóbora e sem janelas, de onde, como vimos,
transcorria a coletiva de imprensa. Quando os jornalistas foram finalmente
autorizados a entrevistar o Andarilho das Estrelas, houve um verdadeiro frenesi,
semelhante a estas liquidações de começo de ano. Jornalistas, cinegrafistas,
fotógrafos e outros profissionais de imprensa corriam freneticamente carregados
de uma parafernália de equipamentos, fios, microfones, pelos corredores de
acesso ao referido salão. É bem verdade também que o local escolhido para a
entrevista era completamente inadequado, pela ausência de ventilação. Mal cabia
tanta gente lá dentro, que, devido à superlotação, ficava apertado, apesar de
amplo. Muitas discussões tomaram lugar, pois os jornalistas disputavam
cadeiras, e, na falta delas, sentavam no chão. Não foram poucas as pessoas que
passaram mal, sufocadas. Houve ainda quem foi nocauteado durante o tumulto,
provavelmente, por um microfone afoito. Além disso, os jornalistas reclamavam,
às vezes, aos gritos, do tratamento concedido à imprensa, alegando que as
autoridades agiam intencionalmente com extrema truculência no intuito impedir a
livre balbúrdia informativa. Ou seja, denunciavam um flagrante desrespeito à
liberdade de expressão. Fato que foi amplamente desmentido pelas mesmas
autoridades! Para complicar ainda mais a situação já complicada, um dos
jornalistas ouviu, segundo ele próprio, de uma de suas fontes, um funcionário
do governo, que o Andarilho das Estrelas não era humano. Informação que surtiu
o efeito de um verdadeiro estouro de boiada, tumultuando ainda mais as
condições em si caóticas. Lá dentro, todos falavam ao mesmo tempo, e foi muito
difícil estabelecer o silêncio no local. Jornalistas foram retirados à força
por apresentarem conduta inadequada, de acordo com nota divulgada pela
organização da coletiva de imprensa. Outros caíram e foram pisoteados. Alguém
desacatou alguma autoridade e foi preso. Quando, na medida do possível, a
confusão foi finalmente contida, o Andarilho das Estrelas foi conduzido até o
centro de uma mesa coberta por microfones. Quase não se via seu rosto, a essa
altura barbeado e com os cabelos raspados, atrás de uma pilha de microfones
amontoados. Ao seu lado, sentaram-se os famigerados agentes secretos, todos
vestidos de modo idêntico, com terno preto, gravata preta e óculos escuros.
Enfim, deram início à entrevista. As primeiras palavras do viajante espacial
foram impactantes. Disse ele calmamente: “Bom dia a todos. Eu viajei por todos os
rincões deste Universo; travei contato com seres obscuros, muito embora conheci
civilizações que fazem da humanidade parecer um formigueiro de formigas
desmioladas!” Foi uma algazarra total, os repórteres gritavam: “Conte-nos sobre
eles!”; “Eu quero saber!”; “Como eles eram?”, “Se parecem conosco?” etc., etc.,
etc.
Mas deixemos a
coletiva de imprensa por enquanto. Nada se compara ao caos que tomou lugar nas
ruas durante o período de “quarentena” e que denominamos de “fenômeno
sociológico inexplicável”. Diante do mal-estar causado pelo episódio relatado
anteriormente ao parágrafo acima, pessoas que não se conheciam passaram a se
reunir em grupos manifestando repúdio à prisão do Andarilho das Estrelas,
considerada, por elas, “arbitrária, ilegal e um atentado aos direitos
individuais da pessoa humana”, exigindo assim a soltura imediata do
prisioneiro. A princípio, era apenas meia dúzia mas, com o passar dos dias e
por meio das redes sociais de computadores conectados à internet, tornou-se uma
bola de neve. Em pouco tempo, se formou uma grande multidão, munida de
cartazes, bandeiras, faixas, a entoar canções de guerra, gritos de ordem, que
se espalhou pelas ruas como uma epidemia incontrolável. Assembleias eram
organizadas nas ruas, ocasião em que oradores de plantão, sob aplausos
intensos, incendiavam os ânimos já bastante exaltados. Anônimos viraram
celebridades de um dia para outro e concediam, envaidecidos, entrevistas para a
televisão, embora muito poucos expusessem argumentos dignos de nota. Nessa
toada, porém, o movimento só crescia e depois de muitos debates, os
manifestantes decidiram se agrupar diante das sedes dos principais governos
envolvidos com a operação de resgate e lá permaneceram acampados. À medida que
o tempo passava, sem o menor sinal de boa vontade das autoridades responsáveis,
que fingiam nada acontecer e, por isso, não aceitavam discutir uma saída para o
impasse, as circunstâncias se tornaram mais e mais críticas e os protestos,
violentos. Mascarados ateavam fogo no que encontravam e jogavam pedras nas
forças de segurança, acionadas para conter os excessos e atos de vandalismo.
Não foi suficiente, pois estas tiveram de recuar muitas vezes. E assim, os
confrontos se repetiram por dias seguidos. De um lado, bombas de gás
lacrimogêneo, gás de pimenta, tiros de bala de borracha; e, de outro, paus,
pedras, fogo, gritos. Surgiram então os heróis e mártires da repressão.
Milagrosamente, apesar da intensidade dos conflitos, ninguém se feriu
gravemente.
Por algum mistério, a
prisão injustificada do viajante das estrelas serviu de pretexto para aflorar
uma grande insatisfação em todos os habitantes do globo terrestre. É bastante
provável que aquelas pessoas queriam ouvi-lo e, frustradas com os episódios que
se seguiram, sentiram-se afrontadas mais uma vez perante a insolência de uma
minoria que toma decisões independentemente da consulta de todos. Porém, não
parou por aí. Outros agrupamentos, de pessoas aparentemente indiferentes a
demandas relativas à liberdade civil, mas contagiadas pelo calor das passeatas,
passaram a caminhar a esmo, arrebanhando outros grupos, que se somavam por onde
passavam. De repente, milhares se uniam descontentes com as mazelas do
cotidiano e apresentavam uma série de reivindicações contra a carestia, o
aumento das passagens de ônibus, a inflação, as péssimas condições da saúde
pública etc. Imagens aéreas captavam cenas impressionantes de um mundo de gente
avançando como um tsunami em direção das grandes capitais. Um pequeno
incidente, definido, talvez, como de segurança nacional ou mundial,
transformou-se numa avalanche de revoltas pelo mundo afora. Os governos,
surpreendidos, foram obrigados abrir negociações com os líderes dos protestos e
deliberaram a libertação do Andarilho das Estrelas e mais a promessa de
montarem em praça pública um palco onde aquele poderia emitir suas opiniões a
respeito de sua jornada interestelar: o seu “apelo à humanidade”. Enfim, as
manifestações foram suspensas. Mas ninguém voltou para casa. Um bater de asas
de uma borboleta, e eis um furacão. De fato, e é até estranho, mas quando o
Andarilho das Estrelas se chocou na atmosfera terrestre, iluminando o céu,
muita gente, secretamente, fez um pedido...
É neste pé em que
estávamos antes de explicar os antecedentes da entrevista que está sendo
realizada no salão azul, que, como vocês já sabem, tem uma porta cor de abóbora
e nenhuma janela. Mas onde havíamos deixado a entrevista mesmo? Ah, sim, no
momento em que o Andarilho das Estrelas dizia que queria se tornar uma
abstração. Nada mais intrigante, não? Vamos ouvi-lo:
- Como assim, disse
um jornalista, não é possível abstrair a humanidade de um ser humano? A menos
que você realmente não seja humano. (Risos).
- Em pensamento é
possível sim. Não só em pensamento, mas também no mundo real, dos fatos, como
se costuma dizer. Somos reduzidos a abstrações diariamente, separados de nós
mesmos, através de algo geral que supostamente nos representa. Pode ser uma
senha, um número, um registro, uma assinatura, um nome. Tudo no nosso mundo é
organizado por noções abstratas e gerais, como o tempo, as normas, os códigos,
os prazos, que enchem as nossas cabeças e os papéis nas escrivaninhas. Isto
quando não somos apenas estatísticas nos indicadores sociais. Nossa vida
inteira é apagada, substituída e representada por uma realidade imaterial mais
importante que nossa própria vida! E daí aquilo que parece verdade é
dissimulado e falso, porém, efetivo. Então, eu pergunto: o que é ser ser humano
ou o que é o humano? Para encurtar a história, eu não sou um ser humano
completamente!
- Ah, então você
realmente é um ET? Eu sabia!
- Não, também não sou um ET, porque nasci na Terra e, tecnicamente falando,
parceiro, quem nasce na Terra não pode ser um extraterrestre. Vou
tentar me fazer entender. Há milhares de anos, os nômades costumavam olhar o
céu e sabiam o momento da noite em que caem mais estrelas-cadentes. Também
seguiam a rota sinuosa dos planetas e quando a posição de uma constelação
significava o dia da partida. Os agricultores, da mesma forma, também conheciam
o céu que comunicava a estação do plantio ou da colheita. Ao contrário, hoje,
jamais olhamos o céu – poluído, por sinal. Por isso, decidi partir. Queria ver
as estrelas de perto, a Lua, os planetas... Então, na verdade, eu me abstraí de
minha humanidade abstrata para descobrir se havia alguma coisa real em mim.
- Profundo, mas não
entendi nada. (Risos) Você está criticando a modernidade, quer voltar para
trás, é isso?
- Não. Na verdade, ir
para frente é voltar para trás, descobrir o passado é engendrar o futuro. Por
isso, antes de partir, eu sentia uma profunda insatisfação com o mundo do jeito
que ele é. Para renunciar totalmente à minha humanidade, eu precisava abdicar
totalmente da minha existência no planeta Terra; não da minha vida.
- O que você está
querendo nos dizer? Por favor, seja menos evasivo.
- Está bem, preste
atenção! O mundo parou para assistir a minha chegada ao planeta Terra, não é?
(Eu não esperava tanto, se bem que devo admitir que as pessoas adoram uma
novidade). Contudo, quem se preocupa ou muda sua rotina com a notícia de mais
uma guerra ou da fome de milhares de seres humanos pelo mundo? Nem parece que
todas essas coisas acontecem com nossos vizinhos. Parece mais uma realidade de
outro mundo, distante de nós. Tudo é tão banalizado e abstrato. Temos até
tribunais para julgar crimes de guerra quando, na verdade, não há guerra que
não seja um crime contra a humanidade!
- Não sei se o
compreendi. Mas me parece que você é um pacifista.
- Não! Não
exatamente. Eu já fui um soldado. Já estive em um campo de batalha.
- Então você já atirou em alguém?!
- Não de verdade. No
mundo em que lutei, as armas não eram letais.
- E quando e como
você decidiu ir embora do planeta Terra?
- Como um nômade, eu
passava horas à noite olhando o céu, e ficava imaginando – ao andar parado – se
numa daquelas estrelinhas não haveria um mundo habitado por criaturas
solidárias e que cuidassem melhor de seu planeta. E eu sonhava. E um sonho
surgiu na minha frente. Vocês sabem que sonho pode significar duas coisas, não
é? Sonho pode ser uma manifestação psíquica inconsciente que ocorre durante o
sono. Aqui, sonho é uma ilusão, química. Mas sonho pode ser também um desejo
forte, consciente. Aqui, o sonho é uma ilusão diferente, porque pode se
realizar. Então, eu vi um sonho chegar ao se tornar real numa viagem
intergalática. Não seria fácil, e, a bem dizer, talvez um empreendimento
suicida. Passei meses me preparando para partir. Então, uma data foi marcada, no
mês de junho, porque o céu fica mais bonito no hemisfério sul. E conforme os
dias foram passando e a data se aproximando bem perto de mim, eu fiquei diante
de um dilema, pois não podia me despedir de ninguém, senão não me deixariam
prosseguir. No dia marcado, eu fiquei triste feliz. Achei que seria bastante
conveniente me despedir apenas das coisas e dos animais. Dei um abraço apertado
em minha máquina de lavar roupas: “Vou sentir sua falta”, disse-lhe. Depois foi
a vez da geladeira: Lágrimas congelantes! E aí fui para o meu quarto e disse
adeus para minha cama, meu travesseiro e, confesso, com a condição de vocês não
publicarem, para o meu hipopótamo de pelúcia! Também disse tchau para as
poltronas, as estantes e o abajur. Em seguida, fui para o jardim e me despedi
dos gatos, do cachorro, da galinha e até dos insetos. Enfim, das flores,
plantas e árvores. Gostaria, no entanto, que vocês registrassem alguns momentos
marcantes: A minha gata Deúda parecia um motorzinho se entrelaçando em minhas
pernas, talvez, tentando me convencer a ficar. Ao me deitar na grama, olhei os
flocos de nuvens brancas no céu azul e vi minha mão, meu antebraço e braço se
ergueram acenando. Também fiz um sinal para um gafanhoto, dizendo: “Soldado,
foi um prazer conhecê-lo!” Uma formiga subiu no meu nariz e eu sorri para ela.
(Não posso afirmar se ela sorriu para mim, porque não entendo muito de boca de
formiga). Um tatu-bolinha gesticulava suas patinhas, que são dezenas – algo que
me tocou muito, pela sua veemência. Mas o que mais me partiu o coração foi o
meu cachorro Foluke que não tirou seus olhinhos de mim até eu desaparecer
totalmente no ar. “Vou sentir saudades, amigão!” gritei lá de cima.
Tudo isso pode parecer muito bizarro e se alguém me contasse eu juro que não acreditaria...
mas se eu não tivesse presenciado todos estes acontecimentos! Eu me lembro de
cada detalhe, desde as primeiras notícias nos jornais, à descida do Andarilho
das Estrelas, de sua prisão, dos protestos. Fui testemunha, com os olhos de
meus próprios pés! E mal posso esperar para assistir seu depoimento na praça da
cidade. Antes é preciso esperar a entrevista terminar. Ah, sim, os repórteres,
eles ainda fazem perguntas. Não os atrapalhemos!
- Mais uma pergunta!
- Andarilho das
Estrelas, como você...
- Diga como você
fez...
- E por quê...?
- Andarilho!
Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho!
Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho!
Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho!
Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho!
Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho!
Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho!
Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho!
Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho!
Andarilho! Andarilho! Andarilho!...
Neste instante, o
Andarilho das Estrelas subitamente parou de falar. Seu olhar atravessara as
paredes atrás de suas memórias. Estava longe, muito longe. Ao notarem essa
atitude estranha e imprevisível, os jornalistas também se calaram. Uma cena que
poderia ser retratada por um pintor de tão estática. O silêncio se arrastava e
a situação permaneceu assim por não sei quanto tempo até que os jornalistas
incomodados com a falta de informações esboçaram uma reação no sentido de
retomarem a carga de perguntas. Não demorou muito para que conversas paralelas,
sugerindo interrogação e perplexidade, fossem aos poucos cochichadas no salão.
Olhares se encontravam, boquiabertos. Então, um dos jornalistas passou a falar
em voz alta, mostrando-se bastante impaciente e, irritado com as condições
precárias da coletiva de imprensa, passou a se queixar abertamente dos
organizadores. Tal agitação causou certa preocupação aos agentes secretos.
Esses se entreolhavam estrategicamente, fazendo sinais táticos, uns para os
outros, com cotoveladas significativas e pisadas em toques no pé ou na canela
do colega vizinho, indicando, porém, que a situação ainda estava sob controle.
Mas diante do burburinho nervoso que se avolumava, um dos agentes secretos,
muito provavelmente o comandante, tomou a palavra e solicitou encarecidamente
aos repórteres que permanecessem em seus lugares. Em vão. Alguns jornalistas já
circulavam livremente pelo salão falando ao telefone celular. Nada, porém,
tirava o Andarilho das Estrelas de suas meditações. Por sua vez, os repórteres
comentavam ou davam risadas da circunstância um tanto inédita, enquanto
fotógrafos tiravam fotos dos mais diversos ângulos. Já os agentes secretos,
prevendo que seria impossível segurar um tumulto dentro do salão, passaram a
gesticular energicamente os braços, com os quais faziam movimentos variados, ao
mesmo tempo em que levantavam os óculos e piscavam os olhos num tipo de código
Morse, avisando que chegava o momento de bater em retirada. Tudo indicava
problemas à vista. Felizmente, o Andarilho das Estrelas saiu de sua letargia
momentânea, arregalou bem os olhos, que se fixaram nos jornalistas, e em
seguida ensaiou dizer alguma palavra que não saía. Diante disso, os jornalistas
caíram paralisados sobre suas cadeiras como se tivessem sido atingidos pelo
olhar petrificante de um górgona.
O que será que está
acontecendo?!
(...)
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