KURZ CIRCUITO
Autor: Jean Pires de Azevedo Gonçalves
O FANFARRÃO
(Versão modernizadora)
Após o Capitão Hegel ter sido
substituído pelo Capitão Marx, agora era a vez do Capitão Kurz assumir o
comando da Tropa Fetiche. Durante os severos treinamentos da tropa, o Capitão
Kurz descobriu que um Trosko gabava-se de ter dado um salto do Cristo Redentor
ao Pão de Açúcar e que, segundo diziam algumas testemunhas, filiadas a uma
organização ufológica denominada Não da
Negativa, isso podia ser confirmado positivamente. Enfurecido, em meio aos
exercícios, o Capitão grita:
TROPA: Um, dois, feijão com arroz; três, quatro, comer no prato; cinco,
seis, no fim do mês; sete, oito, comer biscoito...
CAPITÃO: 671!!!! O senhor disse que pulou do Cristo Redentor ao Pão de
Açúcar. Aqui estamos, em pleno Cristo Redentor, pule novamente!
TROSKO: Sim senhor! Quer dizer: Não senhor... Acho que deve ter ocorrido
algum equívoco. Não estamos no Cristo Redentor. Aqui é o Corcovado! Olha só que
maravilha! Tem vista pro mar...
CAPITÃO: Digo teoricamente. Finja que estamos no Cristo Redentor, de
mentirinha, e dê o pulo agora!
TROSKO: O pulo também pode ser teoricamente; quer dizer, de mentirinha?
CAPITÃO: Não! Pule de verdade, com as duas pernas!
TROSKO: Ah, sim, com as duas pernas me parece bem apropriado...
CAPITÃO: 671, pule agora! Não me faça repetir outra vez!
TROSKO: Não, não, não, e não!... Assim não dá certo, não vai funcionar.
Se não for um pulo do Cristo Redentor, não pode ser de nenhum outro lugar. Sabe
como é, direitos autorais, multas contratuais, o cachê é baixo... Não vai rolar.
CAPITÃO: Olha, se senhor não me obedecer, eu chamo o Caveirão, heim?!
TROSKO: O Caveirão não, por favor! Não chame o Caveirão, não chame o
Caveirão! Eu tenho meda dele! Se for para chamar alguma coisa óssea, não chame
com o “ão” e, sim, com o “inho”. Que tal chamar o Caveirinha? Me parece mais
simpático e até meigo...
CAPITÃO: Cale a boca, imbecil! Pule! Pule! Pule! Pule!
TROSKO: Lamento sim-senhor, não posso, eu estou com uma baita
indigestão. Comi um sanduiche com molho especial muito calórico antes de passar
na academia. Embrulhou o estômago. Sabe como é, os exercícios de pilates são
tão exaustivos!
CAPITÃO: 671! O senhor é um fanfarrão, 671!
TROSKO: Não senhor! Quer dizer: Sim senhor!
CAPITÃO: 671, o senhor é um fanfarrão!!!! Faça 300 flexões agora!
TROSKO: O sim-senhor não quereria ter dito três flexões e sem querer
acabou colocando, por força do hábito de lidar só com zeros, dois zeros atrás
do três e saiu trezentas? Sabe, lapsos de linguagem acontecem. Além do mais, é
tão mais fácil falar só "três"; economiza saliva, voz, oxigênio,
pulmão, músculos bocais, língua etc... Realmente, pra que zero? Zero não é nada
mesmo! Olha só. Zero mais zero é zero; zero vezes zero, zero; zero dividido por
zero... é zero; zero menos zero... Adivinha?!... Também é zero! Coincidência,
não? Aliás, vamos combinar, eu sou um zero à esquerda, o sim-senhor é um zero à
direita, resultado: dá tudo zero e se pôr um, como recitava Trilussa, na frente
de tanto zero é um desperdício de nulidades numéricas, não é mesmo? Afinal
de contas, Capitão, o sim-senhor nunca foi um esbanjador, dá tchau até de mão
fechada e vive dizendo que estamos em crise. Melhor mesmo é fazer só três
flexões... Confie em mim!
CAPITÃO: 671, eu disse: tre-zen-tas flexões... TREZENTAS!!!! Eu disse TREZENTAS!!!!
O senhor por acaso é surdo, não limpa as duas orelhas, os dois ouvidos, ou sei
lá quantos tímpanos, ou o quê?! TREZENTAS!!!! Será que eu preciso gritar?!
TROSKO: Capitão, perdoa-me a observação um pouco intrometida, um tanto
indelicada e até invasiva, é verdade; sei que eu não sou íntimo de sua
excelentíssima pessoa, mas o sim-senhor só fala gritando! Eu nunca vi o
sim-senhor falar, tipo normal, em voz baixa, assim como todo mundo fala. É
sempre aos gritos, esgoelando a garganta... Parece até maluco! Sabe, não é bom
para as cordas vocálicas esse tom muito alto... À noite, o sim-senhor deve
ficar com uma rouquidão horrorosa...
CAPITÃO: (O Capitão Kurz passa a
cantar de modo insano) TREZENTAS!!!! Lá, lá, lá, lá... Eu disse
TREZENTAS!!!! TREZENTAAAS, lá, lá, lá, lá! (E
depois de uma longa pausa, diz sobriamente) Preciso ser mais claro?!
TROSKO: Dá pra imaginar essas flexões teoricamente, do mesmo jeito que a
gente fez com o Corcovado. Lembra-se? Tipo assim, imaginar uma cena em que estou
fazendo as flexões. Olha, eu já estou imaginando, 1, 2, 3, 4... 52, 53... 87,
88... Veja como eu estou ficando
cansado... Agora já são 200 flexões... Falta só um pouquinho! Enfim, TREZENTAS!!!!
Ufa, isso cansa o cérebro!
CAPITÃO: NÃO!!!!!! Faça agora, imbecil! Com os dois braços!
E assim, apesar das súplicas e dos protestos em vão, antes mesmo de
chegar à décima flexão, o pobre Trosko cai esbaforido, desmaiando. Nesse
momento, um Jovem Hegeliano se esconde atrás da tropa.
JOVEM HEGELIANO: Espero que o Capitão Kurz não me veja aqui...
CAPITÃO: Jovem Hegeliano!!! Você não comeu a merenda estragada que eu
joguei no chão! Você não comeu a merenda estragada! Por quê, Jovem Hegeliano?
Pede pra sair! Pede pra sair!
JOVEM HEGELIANO: Posso sair, Capitão? Eu quero tanto sair! Deixa eu sair,
por favor, deixa eu sair!
CAPITÃO: Ótimo, melhor assim. Não aguentava mais este chato. (...)
Tenente, agora me traga os bonequinhos do Comando em Ação e vamos invadir o Formigueiro
do Alemão. Atacar!
Assim, após executar
uma exaustiva prática teórica, especulativa, contemplativa e abstrata, a Tropa
Fetiche destrói o mundo em pensamento, movendo vários bonequinhos que atiram
sons onomatopeicos de metralhadora. Toca a trilha musical que anuncia o The End:
“Tropa Fetiche osso duro de roer, pega um, pega geral, também vai pegar
você...”
- FIM -
O ORÁCULO
Na Atenas dourada de Péricles, um grupo
de jovens passeava por dias inteiros e, entre um piquenique e outro,
dedicava-se toda a vida à filosofia, sendo por isso chamado de
"Peripatetas". Como muitos deles acreditavam-se ter entre os deuses
seus antepassados, mantinham um ar sobranceiro e, não raro, tratavam com grande
desprezo os demais cidadãos da pólis. Acordaram tacitamente entre si que ao
vulgo estava interditada a participação em seus intensos debates teóricos e, por
meio de um novíssimo e intrincado método de persuasão, baseado na ironia e em outros
recursos da retórica, passavam a desafiar, quase à maneira de uma modalidade
esportiva, os pretensos doutos que desgraçadamente caíam em sua teia de
influência ao aceitar enfrentá-los no doloroso parto das ideias. Nas
assembleias realizadas no anfiteatro próximo à acrópole, interpelavam
interlocutores incautos fazendo apenas uma ou duas indagações em meio a
sorrisinhos sarcásticos e a miradas significativas, de soslaio. Sim, olhares
espirituosos e triunfantes! Por fim, pensavam: "Este bundão não percebeu
nada; o paradoxo fundamental". Um dia, quando nadavam num lago, Patão, seu
líder, teve uma eureka, quer dizer, uma boa descoberta, e correu nu por um vale
rochoso a brados largos: Eureka! Eureka! (Isto é: Descobri! Descobri!)
Acéfalo: O que deu nele? O que é
eureka?
Teeteta: Não sei, mas deve ser alguma
coisa importante, pelo jeito que ele ficou, ou algum bicho mordeu a bunda dele
e por isso está gritando assim, de dor.
Patão: Enfim, descobri a essência mais
essencial da humanidade humana!
Empadinha: Mas, Patão, desculpe-me,
você não é um ser humano; você é um pato! Um pato grande, sim, é verdade, mas
não deixa de ser um pato e vai continuar sendo um pato por muito tempo ainda.
Patão: Seu imbecil, eu sou um zoon
politikon, isto é, um animal político. Até quando você insistirá na ontologia
do ser humano?!!! Alguém, por favor, dê um jeito nesse cabra?
Critikon Menor: Empadinha, com estas
mãos eu já nocauteei muito marmanjão nas Olimpíadas passadas! Você quer levar
uns sopapos?
Critikon Maior: Silêncio!!!! Ele vai
falar.
Patão: Ora, como todos sabem, os
escravos são instrumentos falantes. Todavia, descobri que o desejo mais íntimo
da categoria de um escravo é ser categoricamente um escravo. Até mesmo quando
os escravos se revoltam contra a sua condição de escravo, reivindicando
liberdade, e o status de homens livres, falantes sem ser instrumentos, isto já
é premeditado e esperado, no interior de uma lógica irredutível, porque sabem,
escravos que são, que a represália será intensa e a escravatura, recrudescida.
Atenção para estas sábias e belas palavras, extraídas dos mais fundamentais
princípios: escravo é escravo, não é não escravo e não é escravo e não escravo!
Teeteta: Gente, eu estou tremendo.
Olha, eu estou toda arrepiada. Ele falou "categoria". Vocês ouviram?
Isto é fantástico. Categoria!
Patão: Espera lá, mocinha, não tão
depressa! Eu descobri também que a igualdade e a liberdade são princípios apenas
masculinos. O termo apropriado para as mulheres é "obtusidade".
Todos: Por Zeus!!!!!!
Patão: Sim, obtusidade, que, trocando
em miúdos, nada mais quer dizer que o essencial nas mulheres é o fato de serem
seres inerentemente propícios a atividades na cozinha ou no tanque de lavar
togas. Trocando ainda mais e miúdos, até diria eu, em miudinhos,
miudinhos, vocês mulheres não são aptas à nobre arte da filosofia. Ao
pretenderem transpor a essência que lhe cabem, através da filosofia, por
exemplo, vocês se tornam homens. Nem mais nem menos.
Empadinha: Obtusidade?! Precisava
complicar? Porque não disse logo de uma vez...
Critkon Menor: Quieto Empadinha! Você
sabe que sou faixa preta em luta greco-romana...
Critikon Maior: Silêncio!!!! Ele vai
falar.
Patão: Então, prestem atenção, cambada,
para esta sacada fenomenal:
Todo homem é igual e livre;
Uma mulher quer ser igual e livre;
Logo, essa mulher é homem.
Critikon Menor: Patão, você... você é o
cara! Estou tão emocionado! Gênio! Ícone!
Critikon Maior: Silêncio!!!! Ele vai
falar.
Patão: Vejam Teeteta, ela tem bigodes.
Todos: Verdade! Verdade!
Critikon Menor: E também tem uma
penugem no queixo.
Todos: Verdade! Verdade!
Critikon Maior: E fios estranhos nas
têmporas.
Todos: Verdade! Verdade!
Acéfalo: E pelos no nariz.
Todos: Verdade! Verdade!
Empadinha: E cabelo dentro do ouvido.
Todos: Verdade! V...
Patão: Não!!!! Não tem cabelo dentro do
ouvido coisíssima nenhuma! Quem deixou esse jovem heraclitiano entrar aqui?!
Poxa, eu já estou perdendo a paciência.
Todos: Até quando enfim abusarás,
Empadinha, de nossa paciência! (Tradução de: "Quosque tandem abutere,
Empadina, patientia nostra?") Seu mentiroso desgraçado, toma o seu rumo,
parceiro.
(Entra o velho Cícero)
Cícero: Ei, vocês estão me plagiando!
Eu sou o autor das célebres catilinárias... E, além disso, sequer vocês
resolveram o paradoxo do mentiroso.
Critikon Menor: Quem é esse cara?
Critikon Maior: Silêncio!!!! Ele vai
falar.
Patão: Não deem atenção a esse
decrépito com esta peruca mal ajambrada. Esses latinos imitam tudo o que nós
helenos fazemos e ainda querem dar lição de moral na gente?! Ô seu babaca, se
manda daqui com suas catilinárias e este maldito paradoxo sem solução!
(Cícero retira-se)
Patão: Como eu dizia, presumo que
Teeteta em pouquíssimo tempo se metamorfoseará num homem completo.
Teeteta: Não gostei. Você acha que não
custou caro essas próteses de silicone? Quem é que vai me devolver o dinheiro?
E, além do mais, ficaram tão bonitas, eu fiquei tão sexy.
Empadinha: É mesmo, ficou uma gatinha!
Dou o maior apoio, Teeteta.
(Entra o romano P. Tullius Cornelio
Furanus)
Furanus: Galera, o que vocês acham de
fazermos uma festa de arromba para comemorar o solstício de verão?
Todos: Boa ideia! Tullius,
maravilhus!!!!
Furanus: Uhu uhuu!
Empadinha: Podemos fazer tapioca de
berinjela, alcachofras com berinjela, arroz à grega com berinjela e sorvete de
berinjela com cobertura de azeite de oliva.
Todos: E podemos dançar o kudurus!
Furanus: Uhu uhuu!
Patão: Vamos enviar um peregrino a
Delfos para obter autorização do Oráculo.
E assim enviam um peregrino a Delfos
onde, sob a inscrição "Conheça-te a ti mesmo, imbecil", o Oráculo
vaticinava.
Peregrino: Ó glorioso Oráculo, nós, os
filósofos Peripatetas, estamos nos sentindo tão culpados. Não sabemos se quando
castigarmos um escravo devemos bater forte, fortíssimo ou muito, muito, muito
fortíssimo?
Oráculo: A pancada deve ser
proporcional à necessidade da pancada. Ou seja, esmague o escravo como uma panqueca,
faça picadinho dele, torture-o... mas ponha esses malditos preguiçosos para se
mexer... e use de muita, mas muita violência mesmo! Eu quero ver sangue....
Aaaahhhhh! Isso me deixa tão excitado!
Peregrino: Estamos também angustiados,
pois não sabemos se é correto espalhar a eureka pela cidade e ainda assim
dançar kudurus.
Oráculo: Aaahhhh muleque! Se for para
contar a verdade, arrebenta, quebra tudo, pisa o pé na jaca, caia na gandaia,
malandro! E não se esqueça de esvaziar o cofre dos velhinhos da Gerúsia, irmão!
Peregrino: "Caia na gandaia",
poxa, tirou essa do fundo do baú. E Patão, é realmente um guru?
Oráculo: Um guru?! Não, não, não... ele
não passa de um otário!
Peregrino: O quê... otá... o quê?
Oráculo: Otávio. Eu profetizo que
Otávio será o primeiro imperador de Roma. Otaviano Augustus será lembrado por
séculos e séculos. Mas não vai ser agora. O colapso da Antiguidade ainda vai
demorar muito, muito tempo. Não se preocupe, pode curtir a vida a valer, sem
culpa nem traumas. E, por favor, ao passar por Corinto, não se esqueça de
transmitir esta revelação: "Vai Curintchas!!!!"
Peregrino: Grato! Foi tão edificante.
Oráculo: Ah, e o senhor vai pagar com
cartão ou em dinheiro? débito ou crédito? é "cliente menos"? nota
fiscal paulista? (...) Tá aí ainda?! Dá linha na pipa, puxa o carro, irmão!, xô,
fora, adeus, adiós, ciau, adieu, goodbye, Auf Wiedersehen... Próximo!!!!
Ao voltar para Atenas, o peregrino
gritou:
Galera, liberou geral!
Todos: Oba!
Patão: DJ, som na caixa!
Oioioi oioioi Vem dançar kurudo, quero
ver balançar; Mexe e remexe, que é uma loucura... Oioioi oioioi (...)
Teeteta: Gente, alguém viu o Tullius?
Todos: Cadê o Tullius?!!!!
INTERPRETAÇÃO PARA OS QUE ESTÃO EM
INICIAÇÃO NOS MISTÉRIOS DA EUREKA: Zeus havia obrigado Hermes a dar a todos os
artesãos o veneno da mentira. Hermes preparou a mistura e espalhou-a igualmente
por toda a parte. Quando foi a vez do sapateiro, ainda restava uma boa
quantidade no fundo do pote. É por isso que, de todos os artesões, o sapateiro
é o mais mentiroso. (“Hermes e os artesões”, de Esopo).
-
FIM -
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