A GREVE DOS PLANETAS
Os célebres acontecimentos aqui
narrados referem-se à fantástica greve ocorrida no sistema solar quando da
deliberação, por parte dos planetas telúricos, reunidos em assembleia
extraordinária, realizada no ano de sete bilhões, trezentos e quarenta milhões,
quinhentos mil, oitocentos e dois patinhos na lagoa d.N. (depois da Nebulosa
NGC 604), de suspender por tempo indeterminado os movimentos de rotação,
translação, nutação e outros movimentozinhos que não têm tanta importância
assim.
Para a exata compreensão humana de tão
extraordinário acontecimento galático, fez-se necessário, primeiro, um esforço
tremendo de transpor as escalas de nossa humilde e insignificante percepção
antropocêntrica e atingir a magnânima e incomensurável escala planetária;
operação essa que pressupunha a personificação dos planetas em notórios tipos
humanos e na demarcação dos referenciais compatíveis ao entendimento, como meta
de um projeto tal, enquanto tal. Suponhamos, por exemplo, que eu sou
a Terra (“Eu sou a Terra! Eu sou a Terra! La, la, la, la, la!”), você é Vênus e eles, os demais planetas. Tendo-se, assim, estabelecido essa
prerrogativa fundamental e, digamos, prosopopéica, podemos iniciar a nossa
história:
PERSONAGENS: Terra, Vênus, Marte, Mercúrio, Plutão e Mensageiro das Estrelas.
PRIMEIRO ATO
Na abóbada celestial...
TERRA: Ó camaradas! Camaradas planetas
telúricos, aproximem-se, aproximem-se! Há muito um fato me perturba e há
milhares de anos vem me tirando o sono. Trata-se da desigualdade manifesta no
sistema solar. Vejam, os planetas jovianos são muito maiores do que nós. Perto
deles, parecemos bolinhas de gude. E quantas luas eles possuem. Oh, quantas
luas! De todos os tipos, crescente, minguante, cheia, nova, tudo ao mesmo tempo,
numa única noite. Ora, na minha modesta opinião, isso nos traz graves
consequências, como o fato de Júpiter e Saturno presenciarem muito mais
eclipses do que nós. E eu gosto de eclipses. Ah, como eu gosto de eclipses! Sou
louco por eclipses! Mas como tenho de esperar por um eclipse! O que é injusto e
mesmo revoltante! Portanto, eu proponho, a nós, planetas telúricos, que sempre
fomos desprezados pelo grande Astro Rei, a paralisação de todas as nossas atividades
por tempo indeterminado, contando, obviamente, em anos-luz.
VÊNUS: Terra, você sabe que o Sol, o Grande, não gosta de bagunça no sistema solar.
MARTE: Dalva, não é porque você é toda
bonitona assim, a mais brilhante dentre nós, que você pode dissuadir-nos de nossas
reivindicações. Comungo de sua opinião, vossa excelência planeta Terra, e
aceito a sua moção. Mas eu iria mais longe. Penso que devemos radicalizar ainda
mais o nosso movimento e declarar guerra aos jovianos! Guerra! Guerra!
TERRA: Calma, Marte, também não é
assim. Vamos fazer uma manifestação pacífica. Sem violência.
MERCÚRIO: Ei, galera, eu não tenho
nenhuma lua! Vocês não acham isso no mínimo intrigante?
VÊNUS: Eu também não, Mercúrio. Acho
que é normal, acontece.
TERRA: Então, pessoal, faremos uma
assembleia imediatamente!
MERCÚRIO: Êba, assembleia!
Assembleia!!! Vocês o ouviram? Ele disse assembleia. Isso parece interessante.
VÊNUS: Terra, você reclama de barriga
cheia, você é único planeta que tem vida no sistema solar, quiçá, no universo,
e ainda se sente insatisfeito!
TERRA: O quê? Você pensa que é fácil aguentar
estes bichinhos que ficam incessantemente indo para lá, indo para cá, indo para
cá, indo para lá, por todo o seu corpo celeste?! Você não sabe como fazem
coceguinhas, quase morro de tanto rir, verdadeira tortura chinesa! O pior é que
já fiz de tudo pra acabar com esses parasitas, mas não tem jeito, é uma praga!
Ademais, depois que eles inventaram o avião, eu não tenho mais sossego; fica um
zumbido agudo e irritante no meu ouvido 24 horas por dia! Não dá pra se
concentrar e é impossível contemplar as estrelas e ouvir o silêncio destes
apavorantes espaços infinitos.
MERCÚRIO: Planeta não tem ouvido.
MARTE: Cala a boca, Mercúrio!
MERCÚRIO: Planeta tem ouvido?
TERRA: Bom, então, como todos se
manifestaram a favor, eu declaro aberta a primeira reunião desta assembleia
extraordinária.
VÊNUS: Questão de ordem no caos!
Questão de ordem no caos! Alguém quer falar...
PLUTÃO: Olá, pessoal, posso entrar no
movimento de vocês? É que desde a 26ª. Reunião da IAU, que eu absolutamente não
tenho a mínima ideia do que significa essa sigla, me rebaixaram para a condição
de planeta-anão. E isso me deixou muito melindrado.
TERRA: Espere, vou consultar a
assembleia. Quem é a favor do planeta-anão... quer dizer, do planeta Plutão
participar do nosso movimento, ou melhor, da nossa paralisação?
MERCÚRIO: Eu! Eu! Eu! Eu!
MARTE: Cala boca, Mercúrio! Eu sou a
favor, mas com uma condição. Desde que ele não use nenhum banquinho ou escada
para assistir as reuniões.
PLUTÃO: Ei! Isso não é justo! Só porque
eu sou baixinho?!
MARTE: Você não queria ter dito anão?
PLUTÃO: Sabe, vermelhão, eu realmente
não gosto de você!
TERRA: Todos estão de acordo? Sendo
assim, fica permitida a entrada do companheiro Plutão em nosso movimento de
greve.
MERCÙRIO: Ipi, ipi, hurra! Viva o
companheiro Plutão!
VÊNUS: Gente, vamos parar de tanta enrolação
e estabelecer um teto para o término da assembleia?
MERCÚRIO: Boa ideia! Não aguento mais
estes asteroides batendo na minha cabeça. E este blá, blá, blá todo, que nunca
termina e parece não levar a lugar algum...
MARTE: Discordo! “Teto” não é um
conceito universal, e, depois que descobriram a teoria da relatividade, tudo é
relativo. Portanto, melhor seria se estabelecêssemos um chão para
esta assembleia.
VÊNUS: Um chão? Que diferença faz?! Você,
Marte, só sabe tumultuar os nossos trabalhos. Não aguento as suas ironias;
pior, o seu cinismo, e este seu ar de superioridade! “Chão” é algo que não pode
ser estabelecido aqui no espaço. Você não passa de um grande demagogo. Hipócrita!
MARTE: Por favor, não tente manobrar a
assembleia, Vênus.
TERRA: Apesar de concordar inteiramente
com você, minha querida estrela Dalva, estrelinha da manhã, tenho que dessa vez
dar razão ao companheiro Marte. O tempo aqui é infinito, nada acontece, tudo é
tão monótono. Pra que pressa? Aliás, o que você vai fazer hoje à noite, depois
da aula?
PLUTÃO: Informe! Informe! Eu tenho um
informe.
TERRA: Ah, é?! Qual?
PLUTÃO: O companheiro cometa Halley
acaba de entrar em greve!
TERRA, VÊNUS, MERCÚRIO e PLUTÃO: Viva!
Viva! Viva! Viva!
MERCÚRIO: Ei! Ma’sper’aí! Eu estou
esperando há tanto tempo esse tal de cometa Halley aí passar. Quer dizer então
que ele não vem? Que chato!
TERRA: Atenção! Eu tenho uma proposta. Proponho
uma divisão mais equânime de luas no sistema solar!
TERRA, MARTE, VÊNUS, MERCÚRIO e PLUTÂO:
Êêêê! Aprovado! Aprovado! Viva! Viva! Viva! Viva!
MERCÚRIO: Equânime? Por que ele não
disse igual?
MARTE: Eu também tenho uma proposta.
Que tal decretar a desapropriação dos anéis de Saturno?
TERRA, MARTE, VÊNUS, MERCÚRIO e PLUTÂO:
Êêêê! Aprovado! Aprovado! Viva! Viva! Viva! Viva!
VÊNUS: Pessoal, posso fazer uma
proposta? Mais ventos solares refrescantes durante o verão!
TERRA, MARTE, VÊNUS, MERCÚRIO e PLUTÂO: Êêêê! Aprovado! Aprovado! Viva! Viva! Viva! Viva!
MERCÚRIO: Eu também quero fazer uma
proposta. Vamos mudar a forma elíptica da órbita dos planetas para um quadrado?
Êêêê...
(Silêncio)
MARTE: Cala boca, Mercúrio!
PLUTÃO: Pessoal, pessoal, posso fazer
uma proposta também?
TERRA, MARTE, VÊNUS e MERCÚRIO:
NÃO!!!!!!!!!!!
PLATÃO: Obrigado, vocês são tão gentis...
Sinto-me tão bem na presença de vocês!
TERRA: Ordem! Ordem! É preciso ter
seriedade na condução dos trabalhos. (À parte, para si mesmo: Portanto, vou dar
uma de intelectual e falar difícil, além de fazer algumas observações
inteligentíssimas... Apesar de serem incompreensíveis, até para mim mesmo, e
ninguém entender nada). Vamos lá. Hás de convir-te que, conforme demanda a
consulente, a despeito da morosidade do andamento processual, e conforme a
sequência de Titius-Bode[1]...
MERCÙRIO: Alguém pode me explicar o que
esse cara está falando aí? E quem é esse Tito com o bode? Isso parece grego pra
mim. Será que ele não podia falar na nossa língua, o bom e velho planetês?!
MARTE: Chega! Você vive querendo
aparecer, Mercúrio! Por que não amarra uma melancia no pescoço e sai orbitando
pelo espaço afora? Ou melhor, porque não faz uma dupla de música sertaneja com
o planeta-anão, quer dizer, o planeta Plutão?
MERCÚRIO: Boa ideia! “Te dei o sol, te
dei o céu pra ganhar seu coração; você é raio de saudade, meteoro da paixão...”
Alguém se lembra do resto da letra?
VÊNUS: Ai, que romântico!
TERRA: Chega de salamaleques[2]!
MARTE: Isto mesmo, ó companheiro Terra,
façamos desta reunião uma reunião respeitável e ordeira.
TERRA: Vamos votar, companheiros. Quem
é a favor da proposta “um” – greve – levante o vulcão esquerdo.
(...) Quem é favor da proposta “dois” – não greve – levante o
vulcão direito.
MERCÚRIO: Oba! Vamos contar! Vamos
contar!
MARTE: Cala boca, Mercúrio!
TERRA: A mesa entende que não é
necessário contar. Não houve contraste. A proposta “um” ganhou por aclamação:
Greve geral!
(Aplausos)
TERRA, MARTE, VÊNUS, MERCÚRIO e PLUTÂO:
Greve! Greve! Greve! Greve! Greve! Greve! Greve! Greve! Greve! Greve! Greve!
Greve! Greve! Greve! Greve! Greve! Greve! Greve! Greve! Greve! Greve! Greve!
Greve! Greve! Greve! Greve! Greve! Greve! Greve! Greve! Greve! Greve! Greve!
Greve! Greve! Greve! Greve! Greve! Greve! Greve!
- Fim do Primeiro Ato – (Aguardem as novíssimas peripécias dos errantes daqui muito em breve nos próximos mil anos-luz)
SEGUNDO ATO
Tu sabes bastante bem
O quanto venero a guerra,
Como dentre vós, ninguém!
Vejo-te sempre hesitante,
Perdido, em pensamento,Preocupado, bem distante,
Num vendaval de tormento.
Conta-me qual o motivo
Desta tua vã aflição,
Porque eu sempre consigoDesta tua vã aflição,
Acalmar um coração.
TERRA: Eu sei que em nossa Era,
Marte, solução não vemDo fundo de uma cratera,
Das nuvens do céu ou além.
Nossos amigos viajantes
Deste grande firmamentoDepositaram confiantes
Votos em meu juramento.
Mal sabiam, ó meu amigo,
Que eram bolhas de sabãoPalavras de orador antigo
Acostumado à atenção.
MARTE: A causa é isso, somente,
De tão grande angústia assim?Há alguém que nunca mente
Neste universo sem fim?
Teu problema é menor,
Disso eu tenho experiência;Dor de consciência não é pior
Do que os males da existência.
Não te preocupes, portanto,
Remédio não há de faltar
Tenho uma receita e tantoRemédio não há de faltar
Cara de pau é fácil de achar.
TERRA: Agradeço humildemente,
És amigo para mim,Retribuirei enormemente
Um obséquio, outrossim.
Quis ser planeta melhor,
Estudei toda ciência,De Antares à Ursa-Maior,
Nada firme, só inconsistência!
Sinto alívio no meu pranto,
Já começo a me alegrar.Psiu! ouço passos em um canto
Alguém vem nos perscrutar...
Entra Vênus.
VÊNUS: Onde vocês dois estavam? Já estava
cansada de procurá-los. Nossos companheiros esperam para decidirmos os rumos do
nosso movimento.
MARTE: Ué, mas nós não estávamos
parados? Eu pensei que havíamos entrado em estado de greve?
VÊNUS: Engraçadinho. O que vocês tramavam
aqui sozinhos?
TERRA: (À parte: Vou usar dos meus
truques retóricos, pois isso já deu certo uma vez). Veja bem, é preciso ter
clareza da situação. Notar-se-ia (à parte: yes, consegui usar uma mesóclise!)
notar-se-ia que se analisarmos em profundidade a questão por este ângulo obtuso
e estas perspectivas oblíquas, os conceitos aqui empregados referentes à
substância etérea e, dessa forma, absolutamente universal e abstrata, tanto na
sua particularidade, como na sua singularidade concreta, é de extrema
relevância seu conteúdo notável. Neste sentido, e por conta disso, agregando-se
toda a otimização possível e enviesada, de acordo com a geometria fractal,
enquanto tal, um pontinho, bem pequenininho e saltitante “X”, segue em direção
vetorial de um pontinho “Y”, e ao chocar-se com este, o mesmo grita: “Olhe por
onde anda, imbecil!”
VÊNUS: Terra, por favor, quer descer do
pedestal. Todos nós sabemos que você é uma sumidade em inteligência, mas não é
hora para grandes reflexões filosóficas, aliás, um tanto extravagantes. É
urgente a tomada de decisões práticas. Os meninos, Mercúrio e Plutão, aguardam
vocês dois para novas deliberações.
De repente, os três planetinhas avistam
um tatu-bolinha cósmico de cabeça para baixo se esperneando com suas múltiplas
patinhas prateadas.
VÊNUS: Vejam, um tatu-bolinha cósmico!
Ele não consegue se virar e voltar à posição normal. Vamos ajudá-lo!
MARTE: Não. Deixe-o perecer. Deixe a
natureza seguir seu curso natural.
VÊNUS: Não, não vou deixar mesmo!
Vênus vira o tatu-bolinha cósmico que
sai em alta velocidade deixando um rastro de luz pela escuridão do céu sem fim.
MARTE: Pronto, Vênus, agora esse
tatuzinho vai passar a acreditar em milagres!
VÊNUS: O que vocês dois estão
conspirando? Não sei, mas tenho para mim que vocês dois não estão com boas
intenções.
TERRA: Claro que não. Quer dizer, claro
que não estamos conspirando! Só estamos meditando acerca do que fazer. Por que tanta desconfiança?
VÊNUS: Deixa pra lá. Os meninos e eu
estávamos conversando e concluímos que a nossa próxima reivindicação é a
completa e sumária destituição do imperador Sol, o Grande, do centro do sistema
solar.
TERRA: Não vamos personalizar também.
Pensa bem, não adianta trocarmos uma estrela por outra. O que rege o universo
são leis imutáveis e, desculpe-me a redundância, universais. Sabe, pensando bem,
é melhor deixar tudo como está.
MARTE: Ouça, prezado planeta Terra, se
toda esta celeuma for só por causa dos tais satelitezinhos que você mencionou
anteriormente, sejamos francos, sinceros, você tem um e eu tenho dois. Eu posso
lhe emprestar de vez em quando uma lua e a gente esquece toda esta pendenga que
já está dando muita azáfama. O que acha?
VÊNUS: Olha só, Marte, quem te viu e quem te vê, heim? Celeuma, pendenga, azáfama! Qual vai se a próxima?
Aldabrão?
MARTE: Alda-o quê?!
TERRA: Mentiroso, Marte. Mentiroso.
VÊNUS: Pois é!
TERRA: Venhamos e convenhamos, Vênus,
já se esgotaram todas as cartadas de nossas negociações e ultrapassamos todos
os limites do bom senso. Esta paralisação foi longe demais – apesar de não sair
do lugar. Se a gente trocar de estrela, outra pior pode tomar o lugar. Esquece
tudo isso. Depois a gente conta uma mentirinha para aqueles dois lunáticos e
tudo volta a ser como antes.
VÊNUS: Ah, eu sabia que havia algo de
podre no vácuo! Por que quando alguém se impõe com gravidade e fala com
palavras difíceis alguma coisa falsa como se fosse verdade todos acreditam sem
ao menos pestanejar? Mas, afinal, quais são as reais intenções de tamanho
demagogo? Atenção, fama, poder? Vocês dois, não sei qual é o pior: o patife
descarado ou o bonzinho mascarado. Quer dizer então que, para vocês, nada
podemos fazer e que a greve não passou de um showzinho de dois planetinhas, um
azul e outro vermelho, ambos metidos a estrela! Fomos usados, não é? Vocês
sempre souberam que a greve era uma armação. No fundo, nunca acreditavam em nossa
causa; pois tinham certeza, desde o princípio, que apenas obedecemos
mecanicamente leis inexoráveis de uma estrutura onipotente e avassaladora. Mas,
ainda que assim fosse, camaradas, eu não estou tão convencida disso, e jamais
desistiria de lutar por aquilo que acredito, mesmo que o universo inteiro
desabasse sobre minha cabeça para me fazer recuar. Se a vida não está boa, não vou
cruzar os braços e esperar, resignada, o pior acontecer. Eu vou seguir em
frente e tentar mudar, melhorar. Ó Terra, azul, azul celeste, azul marinho,
você nos incitou, acendeu a chama de nossas esperanças, despertou-nos de nosso
sono apático por meio de falsas promessas, e agora quer nos dissuadir dos
nossos ideais e convencer-nos a desistir dos nossos sonhos?! E com que forma
desrespeitosa você trata os nossos amigos! Pobres Mercúrio e Plutão! Nunca os
vi tão contentes. Quantos planos juntos fizemos! Quantos sonhos juntos sonhamos!
Verdadeiro castelo de areia que se desmancha sob as ondas de um mar de
falsidade! Nada era constante, apenas sementes plantadas no solo estéril da velha
retórica. Sua máscara acaba de cair, companheiro Terra, e eu só consigo
enxergar a face dissimulada da traição. Há muito tempo aprendi que quanto mais
alguém se autoproclama correto, mais cínica e irresponsável serão as desculpas
para justificar suas faltas, que certamente virão. E que a verdade, em se tratando
de política, é a mais baixa das categorias do vil engano. Obrigado companheiros
pela aula, nem mesmo numa universidade conseguiria melhores professores. Mas o
que vou dizer para Plutão e Mercúrio?!
MARTE: Ai, ai, será que ela não
entende?! Não adianta nada...
VÊNUS: Ah é? Não adianta nada! Todos
sabem, caro Marte, que você passa todo o seu tempo nos bastidores, entretido em
projetos belicosos, sempre conjurando, sempre conjurando. Aí sim! Tudo adianta.
Adianta tudo! Seus projetos particulares estão sempre à frente dos interesses
coletivos. Aí sim, vale a pena lutar, em mais uma guerra suja. Se enxerga,
camarada, você não passa de um pedante sem sal nem açúcar.
MARTE: Quanta ingenuidade! (À parte,
para si mesmo: Se ao menos eu também não tivesse estes pneuzinhos aqui do lado
da minha barriga, eu ia ficar um fofo!).
TERRA: Não deprecie a companheira
Vênus, Marte. Ela já deu provas e mais provas de grande integridade, de
lealdade inabalável à causa e de enorme inteligência (à parte, para Marte:
aliás, cá entre nós, muito maior do que a nossa!).
MARTE: Ora, Terra, não fui eu, mas você
quem colocou minhocas na cabeça dela e agora ela se tornou uma incendiária
compulsiva. (À parte, para si mesmo: É por isso que eu não gosto destes
intelectuais prepotentes, eles inventam mil ideias estapafúrdias que inculcam
na cabeça vazia do povo mas quando o circo pega fogo, meu amigo! é sempre
assim, enquanto as coisas vão bem, são os primeiros e únicos a colher os louros
da glória, porém, quando vão mal, os capitães a abandonar, em primeiro lugar, a
tripulação e o navio que afunda).
VÊNUS: Bom, já chega! Cansei-me de
vocês dois, velhacos hipócritas! Façam o que bem entenderem. Quanto a mim, vou
me juntar novamente aos companheiros Plutão e Mercúrio e continuar a nossa
jornada de lutas.
TERRA: Vênus, espera... Bom, eu...
pensando bem, devo-lhe desculpas. Aliás, devo desculpas a todos vocês, ao nosso
movimento. Eu vou com você.
VÊNUS: E você, Marte?
MARTE: Vou fazer o quê, ficar sozinho
aqui, observando estrelas cadentes para o resto de meus dias? Quer saber, vocês
têm razão, eu estava tão entediado antes dos acontecimentos inauditos desta greve,
e agora até me sinto importante. Eu vou com vocês também. S’imbora, cambada!
TERCEIRO ATO
Todos os planetas insurgentes estão reunidos. Chega o Mensageiro das
Estrelas.
MARTE: Fiquem tranquilos, companheiros,
eu vou alvejar o imperador com meus mísseis secretos de destruição em massa!
TERRA: Poupe o seu tempo. O Sol possui
uma massa de 332.946 mt. Os seus mísseis, Marte, virariam massa de pizza nas
mãos do imperador Sol, o grande. Além disso, derreteriam antes mesmo de chegar
à superfície solar, devido ao forte calor emanado pelas narinas do imperador. É
melhor nos rendermos e esperarmos punição exemplar.
VÊNUS: Não mesmo! Será que vocês não
percebem que somos nós que tornamos o Sol especial. Se não fosse por nós, ele
não passaria de mais uma bola de fogo sem graça, entre trilhares de outras,
flutuando por estes fundões do universo. Vamos boicotá-lo, ação direta,
camaradas! Basta apenas abdicarmos de sua órbita de influência.
TERRA: (À parte, para si mesmo: Já
sabem, não é? Vou usar da minha oratória infalível para a convencer do
contrario). Seja como for, é de inestimável valor a categoria de síntese e o
nexo causal engendrados por esta situação dantesca...
MARTE: Menos, Terra. Menos!
TERRA: Desculpem-me, sabem como é difícil
largar um vício.
MARTE: Mas, como fugiremos se nós
dependemos da energia solar para subsistir? Fora do sistema, vamos congelar!
TERRA: Há uma solução! Sabem aqueles
bichinhos a que eu me referi anteriormente, que ficam me fazendo coceguinhas?
Eles não são tão ruins assim. Uma espécie deles, chamada ser humano, descobriu
que era possível gerar grande energia através da divisão nuclear.
MERCÚRIO: Como assim?
TERRA: Você já ouviu falar em átomos?
Aquelas bolinhas bem pequenininhas, que de tão pequenininhas não dá nem pra
enxergar, e que compõe toda a matéria do universo? Então, esses tais humanos
descobriram que bombardeando uma bolinha dessas contra as outras, ocorre uma
reação em cadeia entre elas, gerando energia equivalente às explosões solares.
MERCÚRIO: Incrível. Como pode uma bolinha
invisível ter tanta força como uma bolona como o imperador Sol, o grande?
TERRA: Pois é! Só que esses bichinhos
humanos, ao mesmo tempo em que são inteligentes, são incrivelmente burros. Você
acredita que eles construíram bombas atômicas e jogaram em indivíduos de sua
própria espécie, e por pouco quase estiveram a pique de destruir todo o
planeta, ou seja, eu! Verdade seja dita, bons tempos aqueles dos dinossauros!
VÊNUS: Que estúpidos estes bichinhos
humanos!
TERRA: É mesmo. Apesar disso, eles
estão no topo da cadeia alimentar. Mas pra mim, não são mais espertos que uma
ameba tresloucada. Em todo caso, nós podemos usar essa energia provisoriamente,
em nosso proveito.
MERCÚRIO: Então vamos esperar o
imperador Sol dormir e escapar.
VÊNUS: Impossível! O Sol é o dia!
MERCÚRIO: O Sol é o dia?
VÊNUS: Sim. O Sol é dia. Nunca dorme
MERCÚRIO: Puxa vida, não tinha pensado
nisso. Então se nós fugirmos, vamos viver numa eterna noite? Ei, eu gosto do
dia, do amanhecer, dos passarinhos cantando em minha janela!
TERRA: Não se preocupe, Mercúrio. Olhe
à nossa volta, a vertiginosa imensidão do céu. Você consegue contar as
estrelas? Todas elas? São infinitas. E todas elas são como o Sol: Sirius,
Toliman, Antares e tantas outras. Podemos escolher orbitar em qualquer uma
delas. Poderemos escolher os nossos dias. Teremos finalmente autonomia sobre o
nosso próprio destino. Podemos, inclusive, conhecer novos planetas e
libertá-los de possíveis tiranos. Sim, planetas de todo universo, uni-vos!
MARTE: Então, não vamos perder mais
tempo. É agora ou nunca!
PLUTÃO: Pessoal, eu tenho alguns amigos
que aqueles idiotas da 26ª. Reunião da IAU também impertinentemente denominaram
de planeta-anão. São eles: Ceres, Eris, Makemake, Haumea, UB 315, UB 316 e UB
317. Eles moram comigo, na zona transnetuniana. Quando passarmos lá, posso
chamá-los também?
MARTE: Não, Plutão, esta não é a
história da Branca de Neve e os sete planetas-anões, quer dizer, Sete Anões!...
(...) Brincadeira! Pode chamá-los também.
MERCÚRIO: Gente, alguém pode me dizer o
que é aquela coisa brilhante que está saindo do Sol.
VÊNUS: É uma protuberância
nuclear!!!!!!
VÊNUS: Cuidado!!!!
MARTE: Caramba!!!!
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MARTE: Essa passou por pouco...
MERCÚRIO: Alguém anotou a placa daquele
caminhão?...
TERRA: Olá, olá! Vocês estão aí? Todos
estão bem? Vênus, Plutão? Vocês estão bem?
PLUTÃO: Fora três costelas quebradas,
uma perfuração no pulmão, um fêmur fraturado em duas partes, uma prótese
dentária que eu engoli e um olho roxo, o resto é simpatia!
VÊNUS: Eu também estou bem. Mas lá vem
outra protuberância... Vamos fugir!!!!
Os cinco planetinhas batem em retirada. Ao passarem pelos anéis de Saturno, cai uma tempestade de granizo.
MERCÙRIO: Vamos pegar um pouco de gelo
e guardar no congelador?!
TERRA: Façam o que quiserem. Somos
livres agora! Nosso lema daqui por diante será: nem pátria nem patrão!
PLUTÃO: Eu serei o novo Sol!
VÊNUS: Não, Plutão, ninguém pode querer
ser melhor do que os outros e, sentindo-se assim, achar que pode se apossar,
por merecimento, do universo como se fosse um objeto seu. A solidão sem fim, a
eternidade e os mistérios guardados em cada uma destas estrelas, nebulosas ou
cometa peregrino ensinam-nos como é maravilhosa e rara a existência de cada um
de nós e como somos pequenos também. Por isso, todos temos direito ao universo.
E ninguém deve subjugar, oprimir e dominar quem quer que seja, por qualquer
estigma ou preconceito. Foi por isso que lutamos, contra isso, pela nossa
liberdade. E, nesse sentido, somos iguais. Lembra-se de como fomos
ridicularizados pelos críticos, estes anônimos fabricantes de verdades, que
sempre nos desacreditaram? Quem se importa com eles? Hoje provamos que eles
estavam errados, que não passavam de invejosos que jamais tiveram a coragem de
ousar, de se arriscar, de viver, e odeiam a todos que assim o fazem, como nós.
Não se preocupe agora com o dia de amanhã, hoje somos felizes!
MERCÚRIO: Ei, olha um cartaz!
PLUTÃO: São meus amigos que vão dar uma
festa hoje. Vai ter boa música, samba, funk, moda de viola caipira, punk,
rock’n’roll e até música clássica, que tinha num disquinho que estava dentro de
uma sonda e caiu aqui.
TERRA: Quem vai se apresentar? Alguém
pode ler as atrações, por favor. Sou míope e esqueci os meus óculos.
MERCÚRIO: É um tal de... El-vis
Pres-ley... Elvis Presley?!!! Mas o Elvis não...
TERRA: Não! Você não assistiu o filme
do “Superman”? Lembram-se de quando, no início, alguns vilões, o general Zod,
Ursa e Non, foram banidos do planeta Krypton para a zona fantasma, aprisionados
dentro de em espelho e lançados ao espaço? Alguém se lembra como eles gritavam?
Então, fizeram a mesma coisa com o Elvis. Segundo me contaram, foi o serviço
secreto de um time de futebol ou de uma escola de samba, sei lá, alguma coisa
assim, chamada EUA, que o prendeu e o arremessou no espaço sideral justamente
quando o rei do rock cantava “It’s now or never”.
VÊNUS: Puxa, eu sabia! Eu sempre
desconfiei...
MARTE: Galera, vai começar o
rock’n’roll!!!!!!
(Música)
“Well, it’s one
for the money
Two for the
showThree to get ready
Now go, cat, go
But don’t you step
On my blue suede shoes...”
Neste momento começa um bate-cabeça
frenético e de alta insanidade mental que contagiou todos os astros do universo,
tendo o Sol se redimido de todas as intransigências e renunciado o seu
esclarecido despotismo. Quem daqui da Terra assistiu ao fenômeno jura que foi a
coisa mais inesquecível já presenciada em toda eternidade.
Quando numa noite de outono estrelada,
Nossa esperança em vão procura amizade,
No vazio da multidão, a Terra desolada.
Será que existe agora uma vida acordada,
Em algum mundo distante, talvez uma cidade;Perdida numa via de estrelas, e tempestade,
Sonhando ali encontrar companhia, nessa estrada?
Os cinco amigos planetinhas ensinaram
Que lutar por liberdade é sempre o caminho.E, com perseverança, a vitória alcançaram,
Contra os desmandos de um tirano mesquinho.
E que é possível mudar o mundo, eles provaram,Ao último Anarquista, que não se sente mais sozinho.
- FIM -
Motivos dialéticos que explicam o fato de um indivíduo torcer pelo
Corinthians, o Palmeiras, o São Paulo, a Portuguesa de Desportos e, pasmem, o
Flamengo, tudo ao mesmo tempo e não necessariamente nessa mesma ordem. “Sou Curintchas, desde piquinininho. Mas uma dúvida silogística depressa
se apoderou dos meus pensamentos: Todo curintchano é sofredor; eu, que sou um
bom curintchano, não sou sofredor; logo, devo esperar o Curintchas me tornar um
sofredor perdendo todo final de campeonato. Mas como resolver, em termos
práticos, este corolário lógico? Depois de tanto matutar, eis que urge e surge
a solução: Vou torcer também para o porcão! Mas novas questões se colocaram –
questões essas, inclusive, de ordem geográfica. Ora, se nasci em São Paulo,
devo torcer para o time que leva o nome do estado, que é o time dos pó-de-arroz!
Mas, e a Portuguesa? A Portuguesa, eu não sei por quê? Mas, creio eu, que
também seria muito razoável e conveniente torcer para a lusa. Já o mengão, é só
para aumentar ainda mais a confusão. Algumas questões perpassam por toda essa
questão paradoxal. Em primeiro lugar, onde está escrito que eu devo torcer só
para um único time? Em segundo lugar, onde está escrito que para ficar contente
é preciso que o time vença? E se meu time perder, não posso ficar feliz? Quem
ditou isso? Deus é que não foi! Sendo assim, por que devo aceitar regras que
alguém que eu não conheço inventou? Não, senhor! Da minha vida cuido eu e faço
o que eu bem quiser, não roubei nem matei! Se eu quiser torcer para o meu time
perder, vou torcer e pronto! E se meu time perder, vou comemorar até o dia
seguinte! E com tanto time para torcer, perdendo ou ganhando, tanto faz, eu
sempre estarei feliz. Na verdade, eu torço mesmo é pro juiz... pro juiz
apanhar! Juiz ladrão!” (Depoimento anônimo). Mas o que isso tem a ver com a
greve?!
Apendicite à Segunda Meditação:
“A
partir de hoje, não vou mais ao médico e, sim, ao veterinário. Foi
constatado, a partir de exaustiva experiência, tão certa como 1 + 1 = 2, que o
atendimento veterinário é muito mais humano do que o realizado por um médico. Basta
entrar num hospital e comprovar essa afirmação observando uma consulta médica.
O doutor chama o paciente, como um sargento chama um recruta, sequer olha para
ele, em poucos segundos lhe prescreve uma receita e grita: ‘O próximo!’ Já o
veterinário, não. Este ao ver um pet, se derrete todo. ‘Ai, que fofinho! Qual é
o nome dele? Dá a patinha, dá! Quer carinho na barriguinha, quer? Toma um
biscoitinho. (...) Tchau, lindinho!’ Os fatos são evidentes por si mesmos e
insofismáveis, e diante de tais provas cabais, tomei a resolução, inconteste e
irrefragável, de, doravante, tratar minha saúde numa pet shop” (Depoimento
anônimo). Doravante, ainda se usa
isso? Mas, afinal, o que isso tem a ver com a greve?!
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