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sexta-feira, 7 de junho de 2013

PUTRECRÔNICAS

Há tempos atrás idealizei e comecei a escrever uma série sobre zumbis. Conforme esse tema foi se tornando cada vez mais clichê e utilizado exaustivamente pela TV e no cinema, desanimei e engavetei a obra. Mas agora decidi retomar esse projeto porque essa série zumbi será bem diferente do que já foi feito até hoje. Então, em primeira mão no Coletivo Zine, segue o capítulo de introdução das



Relatos da decomposição humana


Por: Wagner Nyhyw

PÁGINA 1 – A VERDADE DA CARNE


O homem sempre fez questão de deixar uma marca para a posteridade. Um registro, uma nota, uma história. Não sei bem o motivo, mas seja qual for, é essa mesma razão que me leva a escrever estas palavras tortas, essa narrativa sangrenta e cataclísmica, mas verdadeira e desesperada. Muito provavelmente ninguém jamais lerá esta missiva. Creio que a própria língua que ainda conhecemos e utilizamos em breve se perderá. Não importa. Ao escrever, tenho uma sensação de dever cumprido. Dever no sentido de relatar o que aconteceu e está acontecendo. Como já disse, não sei bem por que sinto esse dever. Acho que é a única coisa que posso fazer agora. O único legado que deixarei antes de partir.

Como aconteceu não é importante. O porquê é facilmente deduzível: a estupidez humana. Não poderíamos ter outro desfecho. Vamos então ao depois.

Vou contar a primeira vez em que vi um Deles.

Quem eu sou, o que eu fazia, onde eu morava, não importa. Tudo que eu vivi antes daquele dia é apenas um borrão na quase inteiramente apagada história humana. Minha primeira lembrança relevante é o noticiário, algumas semanas antes. Não me pergunte que dia e horas eram, nem se era dia ou noite, pois o tempo agora é apenas uma ponte entre estar vivo ou estar morto. Aquela notícia na TV! Mortos andando pelas ruas! Os famosos zumbis dos filmes de terror. Mas não era Fome Animal ou Evil Dead que passava na TV, era o noticiário. Claro que ninguém levou a sério. Alguma montagem, como tantas outras. No máximo, adolescentes fantasiados querendo assustar idosos. Mas as mortes... aí começou a ficar sério. A imprensa alardeava se tratar de um culto demoníaco, uma espécie de zumbilatria satanista. Praticantes de magia negra, jogadores de RPG e fãs de heavy metal extremo haveriam se unido em uma seita homicida e monstruosa.
Bem, assassinatos e psicopatas fazem parte do cotidiano moderno, então aquela era apenas mais uma notícia, real ou montada, como tantas outras que se espalhavam pelos meios de comunicação. Seguia minha vida normalmente até aquela noite em que caminhava pela vizinhança. O bairro era muito sossegado, residencial e habitado por famílias pacatas, assim me assustei ao passar frente à casa de Hygor. Tremenda barulhada vinda da garagem, aparentemente muitos objetos caindo ou quebrando. Quando distingui a voz de Hygor, praguejando aos berros, imediatamente corri pra lá.

A porta da garagem estava apenas encostada, assim adentrei, cautelosamente. Sob a luz bruxuleante, demorei um pouco pra distinguir o que ocorria. Entulhos e inutilidades diversas decoravam o ambiente, mas bem ao fundo, estava... lá estava...

Sim, é isso mesmo. Era um Deles.

 O forte cheiro de carne podre turvava meus sentidos, mas ainda assim cada detalhe daquela imagem impressionante era gravada em minha mente de forma permanente, como uma escultura sendo moldada na rocha. A pele enegrecida, meio esverdeada, ressecada e rachada como a de um réptil. Rosto assustadoramente deformado e inchado, cheio de bolhas purulentas. Dezenas de minúsculas larvas passeavam por sua face, principalmente nas órbitas dos olhos, já meio afundados para o interior do crânio, cobertos por uma espécie de tela viscosa esbranquiçada.

Hygor acabara de prender seu braço esquerdo a uma corrente e o empurrava para trás violentamente. Ao me ver, chamou para conferir de perto aquele ser inexplicável e, bastante excitado, narrava como o encontrou e capturou.

Entrementes, eu não prestava atenção. Hipnotizado por aquilo que não podia ser uma montagem, não podia ser uma peça, não estava na tela de uma TV ou computador. Estava na minha frente. Ao vivo. Ou ao morto, não sei bem.  A criatura pareceu me ver, embora seja difícil acreditar que aquelas órbitas semivazadas ainda sejam capazes de enxergar qualquer coisa. Mas é fato que com minha aproximação virou o rosto monstruoso em minha direção e abriu a boca. Estaria tentando falar? Mas dali não saiu sons, apenas uma baba pastosa e escura, enquanto um fluido tipo mingau cor de argila escorria pelas narinas e pelos ouvidos. Seria seu cérebro? Lentamente, estendeu o braço direito, livre, enquanto arrastava as pernas, tentando se aproximar de mim. Mas sua mobilidade era limitada, até o limite da corrente presa na parede.

Caminhava vagaroso, até onde sua cadeia lhe permitia. Cada gesto parecia um grande martírio. Aquele trapo humanóide soava como um lamento da natureza. Mas não era de todo ruínas. Naquele momento pude ver o incrível contraste entre seus lábios putrefatos e os dentes intactos, portentosos, impressionantemente brancos. Além disso, ainda apresentava vasta cabeleira, madeixas negras, longas e lisas. E o que dizer das roupas? Eram de qualidade muito melhor do que as minhas. Camisa e calça social de alto padrão. Sujas e surradas, é verdade, mas ainda conservadas, assim como os luxuosos sapatos de couro. Bela roupa, encobrindo o restante daquele corpo decadente em desintegração. Somente através dela pude ter certeza de que se tratava de um ser humano do sexo masculino, ou mesmo de que se tratava de um ser humano, tal era o nível de deformidade das partes não cobertas pelas vestimentas.

Deve ter sido alguém importante em vida, talvez um podre de rico. Mas ali, naquele derradeiro dia, naquela garagem-túmulo, era só podre.

Apesar da podridão, o corpo cambaleante não apresentava nenhum sinal de violência ou de ter sofrido qualquer agressão. E embora fosse impossível ter noção precisa de sua idade, não aparentava ser muito velho. De que teria morrido então? Ataque cardíaco? Câncer? Teria mesmo morrido? Sim, claro que morrera. Não poderia apresentar aqueles sinais de putrefação estando vivo. Não podia estar vivo, mas se mexia.

Ainda esticava o braço em minha direção quando Hygor o afastou violentamente com uma pá. Lentamente, recuou, assustado.

 - Viu que criatura asquerosa? Está ansiosa por nos atacar e devorar.

Finalmente consegui gaguejar algumas palavras, ainda espantado: - Hygor, é melhor chamarmos a policia.
- Que mané policia, o próprio governo deve ter criado esses monstros para matar moradores de rua, marginais e desavisados.

Chuta uma lata vazia que acerta a perna do morto-vivo, que se contorce, não sei se por dor ou medo.  - Aberração nojenta - ainda completa, soltando uma cusparada sobre o animal acuado no canto.

- Hygor, você não pode deixar isso preso aqui. Vou chamar alguém.

- Ei, ei, calma aí, você não vai a lugar algum.

Eu já me dirigia à porta, mas rapidamente Hygor bloqueia meu caminho. – Acho que vou deixar você aqui, o monstro deve estar com fome – ri, zombeteiro.

Impaciente, tento forçar a saída – Isso é sério, porra, sai da minha frente. – Mas ele é forte e me segura, me empurrando de volta pra trás. – Daqui você não sai, não vai me tirar meu novo animal de estimação.

Na tentativa de me libertar, acabo acertando uma violenta cotovelada na boca de Hygor. Não tinha intenção de agredí-lo com tanta força, mas a ira do momento gerou uma reação desproporcional. Ele coloca a mão sobre o beiço inferior, irrompendo sangue em profusão.  – Meu dente. Filho da puta, você quebrou meu dente. Vou te matar.

Ataca furiosamente. Me acerta vários socos. Tento me defender, mas não tenho chance, ele é muito forte. Vou ao chão com os impactos. Completamente transtornado, Hygor se atira sobre mim e fecha as mãos sobre meu pescoço, apertando insanamente. O ar começa a me faltar. Sinto os sentidos me abandonando. Em desespero, tento falar, mas já estou sufocado. Só penso no fim. Até que repentinamente a pressão afrouxa. Vejo a imagem turva de hygor, assustadíssimo. E do seu lado... do seu lado... O cadáver ambulante... com a mão em seu ombro.

- C-como... como escapou? - Dá um tapão violento naquela mão grotesca de pele escamosa e unhas descolando e recua. - Tire a mão de mim, assassino maldito.

A criatura parece ficar meio desconcertada, como se estranhasse a violenta reação de Hygor. Cambaleia para trás. Chama então a atenção um volume crescente dentro de sua calça social, como se um novo membro estivesse brotando no meio de suas pernas. Em outras palavras: uma ereção. Como se não bastasse aquela situação já horripilante, ele ainda estava tendo uma ereção.

- Mas o que é isso? Bicho maldito. Quer nos foder antes de comer?

Aquilo enfureceu Hygor ao extremo do extremo. Pegou uma barra de ferro no meio das tralhas e partiu enlouquecido pro ataque. Em sua vagarosidade e dificuldade movimentar, o defunto não tem nenhuma chance de esboçar uma defesa. Hygor desfechou um primeiro golpe certeiro na volumosa região escrotal do infeliz, que explodiu como um balão.

Somente tempos depois descobri que aquela ereção na verdade era uma reação absolutamente normal de um cadáver. Não era provocada por dilatação de veias sanguíneas, mas por gases bacterianos que se infiltram no interior do corpo. Como a pele do pênis é frouxa, ela estica pela descarga gasosa. Só isso. Absolutamente normal e involuntário. Assim, aquele pau duro era apenas um balão cheio de gás, que explodiu ao ataque de Hygor.

O coiso não pareceu ter sentido qualquer dor, aparentava apenas uma expressão nula, de não entender o que estava acontecendo. Já Hygor continuou o ataque. A barra desabou a seguir sobre o crânio do pobre desmorto, atingindo o lóbulo esquerdo. Pedaços da cabeça, de uma massa quase líquida que devia ser o que restava de seu cérebro e sangue coagulado voam pelo recinto. Rapidamente, novo golpe no lado direito da cabeça, que afunda como um balão murcho. O belo couro cabeludo se solta e flutua pelo ar acre.
Os golpes não pararam, acertando tórax, pernas, braços e tudo mais daquilo que um dia fôra um ser humano.  Debaixo das roupas caras, o sangue coagulado escorria como uma goiabada, concentrado principalmente nas costas e membros. Logo, o zumbi desabou ao chão e diante da surra implacável rapidamente se transformou em uma gelatina disforme de carne e sangue e ossos partidos. Conforme o corpo era arrombado pelos golpes, vermes e colônias de larvas escorriam de seu interior, assim como uma escura massa pastosa castanho-cinza, de fedor indescritível.

Nesse momento não suportei mais aquela cena horrenda e ao desviar o olhar para o canto do recinto notei a mão esquerda do defunto, caída junto à corrente que o prendia. Então foi assim que escapou, desmembrando os pedaços de carne e ossos frouxos.

Hygor só parou quando não restou mais nada para bater além das roupas de grife e matéria orgânica já em estado líquido. Sorriu vitorioso, virou-se pra mim e ainda segurando a barra de ferro coberta de sangue, tripas, substâncias corporais diversas e restos de vermes, agarrou meu braço com a mão livre e levantou-me com firmeza.

- Está vendo? É isso que queria deixar por conta das autoridades? Ia estuprar e matar nós dois, sem hesitar. Se eu não tivesse agido rápido, ia nos pegar de surpresa, e aí não teríamos chance, meu caro. Pode me agradecer, e considere-se um cara de sorte.

Ainda sem conseguir falar, olho praquela sujeira podre e fétida esparramada pelo piso, que até há pouco ambulava em minha direção e parecia me encarar com curiosidade. Fixo na sequência a barra ensanguentada a minha frente. Sinto minha garganta, ainda latejando. Lembro das estranhas mortes em circunstâncias misteriosas noticiadas pela TV. É, creio que Hygor está certo. Sou realmente um cara de sorte.


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