Relatos da decomposição humana
Por: Wagner Nyhyw
PÁGINA 1 – A VERDADE DA
CARNE
O homem
sempre fez questão de deixar uma marca para a posteridade. Um registro, uma
nota, uma história. Não sei bem o motivo, mas seja qual for, é essa mesma razão
que me leva a escrever estas palavras tortas, essa narrativa sangrenta e
cataclísmica, mas verdadeira e desesperada. Muito provavelmente ninguém jamais
lerá esta missiva. Creio que a própria língua que ainda conhecemos e utilizamos
em breve se perderá. Não importa. Ao escrever, tenho uma sensação de dever
cumprido. Dever no sentido de relatar o que aconteceu e está acontecendo. Como
já disse, não sei bem por que sinto esse dever. Acho que é a única coisa que
posso fazer agora. O único legado que deixarei antes de partir.
Como
aconteceu não é importante. O porquê é facilmente deduzível: a estupidez
humana. Não poderíamos ter outro desfecho. Vamos então ao depois.
Vou contar a
primeira vez em que vi um Deles.
Quem eu sou,
o que eu fazia, onde eu morava, não importa. Tudo que eu vivi antes daquele dia
é apenas um borrão na quase inteiramente apagada história humana. Minha
primeira lembrança relevante é o noticiário, algumas semanas antes. Não me
pergunte que dia e horas eram, nem se era dia ou noite, pois o tempo agora é
apenas uma ponte entre estar vivo ou estar morto. Aquela notícia na TV! Mortos
andando pelas ruas! Os famosos zumbis dos filmes de terror. Mas não era Fome
Animal ou Evil Dead que passava na TV, era o noticiário. Claro que ninguém
levou a sério. Alguma montagem, como tantas outras. No máximo, adolescentes
fantasiados querendo assustar idosos. Mas as mortes... aí começou a ficar sério.
A imprensa alardeava se tratar de um culto demoníaco, uma espécie de
zumbilatria satanista. Praticantes de magia negra, jogadores de RPG e fãs de
heavy metal extremo haveriam se unido em uma seita homicida e monstruosa.
Bem,
assassinatos e psicopatas fazem parte do cotidiano moderno, então aquela era
apenas mais uma notícia, real ou montada, como tantas outras que se espalhavam
pelos meios de comunicação. Seguia minha vida normalmente até aquela noite em
que caminhava pela vizinhança. O bairro era muito sossegado, residencial e
habitado por famílias pacatas, assim me assustei ao passar frente à casa de
Hygor. Tremenda barulhada vinda da garagem, aparentemente muitos objetos caindo
ou quebrando. Quando distingui a voz de Hygor, praguejando aos berros, imediatamente
corri pra lá.
A porta da
garagem estava apenas encostada, assim adentrei, cautelosamente. Sob a luz
bruxuleante, demorei um pouco pra distinguir o que ocorria. Entulhos e
inutilidades diversas decoravam o ambiente, mas bem ao fundo, estava... lá
estava...
Sim, é isso
mesmo. Era um Deles.
O forte cheiro de carne podre turvava meus
sentidos, mas ainda assim cada detalhe daquela imagem impressionante era
gravada em minha mente de forma permanente, como uma escultura sendo moldada na
rocha. A pele enegrecida, meio esverdeada, ressecada e rachada como a de um
réptil. Rosto assustadoramente deformado e inchado, cheio de bolhas purulentas.
Dezenas de minúsculas larvas passeavam por sua face, principalmente nas órbitas
dos olhos, já meio afundados para o interior do crânio, cobertos por uma
espécie de tela viscosa esbranquiçada.
Hygor
acabara de prender seu braço esquerdo a uma corrente e o empurrava para trás
violentamente. Ao me ver, chamou para conferir de perto aquele ser inexplicável
e, bastante excitado, narrava como o encontrou e capturou.
Entrementes,
eu não prestava atenção. Hipnotizado por aquilo que não podia ser uma montagem,
não podia ser uma peça, não estava na tela de uma TV ou computador. Estava na
minha frente. Ao vivo. Ou ao morto, não sei bem. A criatura pareceu me ver, embora seja
difícil acreditar que aquelas órbitas semivazadas ainda sejam capazes de
enxergar qualquer coisa. Mas é fato que com minha aproximação virou o rosto
monstruoso em minha direção e abriu a boca. Estaria tentando falar? Mas dali
não saiu sons, apenas uma baba pastosa e escura, enquanto um fluido tipo mingau
cor de argila escorria pelas narinas e pelos ouvidos. Seria seu cérebro?
Lentamente, estendeu o braço direito, livre, enquanto arrastava as pernas, tentando
se aproximar de mim. Mas sua mobilidade era limitada, até o limite da corrente
presa na parede.
Caminhava
vagaroso, até onde sua cadeia lhe permitia. Cada gesto parecia um grande
martírio. Aquele trapo humanóide soava como um lamento da natureza. Mas não era
de todo ruínas. Naquele momento pude ver o incrível contraste entre seus lábios
putrefatos e os dentes intactos, portentosos, impressionantemente brancos. Além
disso, ainda apresentava vasta cabeleira, madeixas negras, longas e lisas. E o
que dizer das roupas? Eram de qualidade muito melhor do que as minhas. Camisa e
calça social de alto padrão. Sujas e surradas, é verdade, mas ainda
conservadas, assim como os luxuosos sapatos de couro. Bela roupa, encobrindo o
restante daquele corpo decadente em desintegração. Somente através dela pude
ter certeza de que se tratava de um ser humano do sexo masculino, ou mesmo de
que se tratava de um ser humano, tal era o nível de deformidade das partes não
cobertas pelas vestimentas.
Deve ter
sido alguém importante em vida, talvez um podre de rico. Mas ali, naquele
derradeiro dia, naquela garagem-túmulo, era só podre.
Apesar da
podridão, o corpo cambaleante não apresentava nenhum sinal de violência ou de
ter sofrido qualquer agressão. E embora fosse impossível ter noção precisa de
sua idade, não aparentava ser muito velho. De que teria morrido então? Ataque
cardíaco? Câncer? Teria mesmo morrido? Sim, claro que morrera. Não poderia
apresentar aqueles sinais de putrefação estando vivo. Não podia estar vivo, mas
se mexia.
Ainda
esticava o braço em minha direção quando Hygor o afastou violentamente com uma
pá. Lentamente, recuou, assustado.
- Viu que criatura asquerosa? Está ansiosa por
nos atacar e devorar.
Finalmente
consegui gaguejar algumas palavras, ainda espantado: - Hygor, é melhor
chamarmos a policia.
- Que mané
policia, o próprio governo deve ter criado esses monstros para matar moradores
de rua, marginais e desavisados.
Chuta uma
lata vazia que acerta a perna do morto-vivo, que se contorce, não sei se por
dor ou medo. - Aberração nojenta - ainda
completa, soltando uma cusparada sobre o animal acuado no canto.
- Hygor,
você não pode deixar isso preso aqui. Vou chamar alguém.
- Ei, ei,
calma aí, você não vai a lugar algum.
Eu já me
dirigia à porta, mas rapidamente Hygor bloqueia meu caminho. – Acho que vou
deixar você aqui, o monstro deve estar com fome – ri, zombeteiro.
Impaciente,
tento forçar a saída – Isso é sério, porra, sai da minha frente. – Mas ele é
forte e me segura, me empurrando de volta pra trás. – Daqui você não sai, não
vai me tirar meu novo animal de estimação.
Na tentativa
de me libertar, acabo acertando uma violenta cotovelada na boca de Hygor. Não
tinha intenção de agredí-lo com tanta força, mas a ira do momento gerou uma
reação desproporcional. Ele coloca a mão sobre o beiço inferior, irrompendo
sangue em profusão. – Meu dente. Filho
da puta, você quebrou meu dente. Vou te matar.
Ataca
furiosamente. Me acerta vários socos. Tento me defender, mas não tenho chance,
ele é muito forte. Vou ao chão com os impactos. Completamente transtornado,
Hygor se atira sobre mim e fecha as mãos sobre meu pescoço, apertando
insanamente. O ar começa a me faltar. Sinto os sentidos me abandonando. Em
desespero, tento falar, mas já estou sufocado. Só penso no fim. Até que
repentinamente a pressão afrouxa. Vejo a imagem turva de hygor, assustadíssimo.
E do seu lado... do seu lado... O cadáver ambulante... com a mão em seu ombro.
- C-como...
como escapou? - Dá um tapão violento naquela mão grotesca de pele escamosa e unhas
descolando e recua. - Tire a mão de mim, assassino maldito.
A criatura
parece ficar meio desconcertada, como se estranhasse a violenta reação de
Hygor. Cambaleia para trás. Chama então a atenção um volume crescente dentro de
sua calça social, como se um novo membro estivesse brotando no meio de suas
pernas. Em outras palavras: uma ereção. Como se não bastasse aquela situação já
horripilante, ele ainda estava tendo uma ereção.
- Mas o que
é isso? Bicho maldito. Quer nos foder antes de comer?
Aquilo enfureceu
Hygor ao extremo do extremo. Pegou uma barra de ferro no meio das tralhas e
partiu enlouquecido pro ataque. Em sua vagarosidade e dificuldade movimentar, o
defunto não tem nenhuma chance de esboçar uma defesa. Hygor desfechou um
primeiro golpe certeiro na volumosa região escrotal do infeliz, que explodiu
como um balão.
Somente
tempos depois descobri que aquela ereção na verdade era uma reação
absolutamente normal de um cadáver. Não era provocada por dilatação de veias
sanguíneas, mas por gases bacterianos que se infiltram no interior do corpo.
Como a pele do pênis é frouxa, ela estica pela descarga gasosa. Só isso.
Absolutamente normal e involuntário. Assim, aquele pau duro era apenas um balão
cheio de gás, que explodiu ao ataque de Hygor.
O coiso não
pareceu ter sentido qualquer dor, aparentava apenas uma expressão nula, de não
entender o que estava acontecendo. Já Hygor continuou o ataque. A barra desabou
a seguir sobre o crânio do pobre desmorto, atingindo o lóbulo esquerdo. Pedaços
da cabeça, de uma massa quase líquida que devia ser o que restava de seu
cérebro e sangue coagulado voam pelo recinto. Rapidamente, novo golpe no lado
direito da cabeça, que afunda como um balão murcho. O belo couro cabeludo se
solta e flutua pelo ar acre.
Os golpes
não pararam, acertando tórax, pernas, braços e tudo mais daquilo que um dia
fôra um ser humano. Debaixo das roupas
caras, o sangue coagulado escorria como uma goiabada, concentrado
principalmente nas costas e membros. Logo, o zumbi desabou ao chão e diante da
surra implacável rapidamente se transformou em uma gelatina disforme de carne e
sangue e ossos partidos. Conforme o corpo era arrombado pelos golpes, vermes e
colônias de larvas escorriam de seu interior, assim como uma escura massa
pastosa castanho-cinza, de fedor indescritível.
Nesse
momento não suportei mais aquela cena horrenda e ao desviar o olhar para o
canto do recinto notei a mão esquerda do defunto, caída junto à corrente que o
prendia. Então foi assim que escapou, desmembrando os pedaços de carne e ossos
frouxos.
Hygor só
parou quando não restou mais nada para bater além das roupas de grife e matéria
orgânica já em estado líquido. Sorriu vitorioso, virou-se pra mim e ainda
segurando a barra de ferro coberta de sangue, tripas, substâncias corporais
diversas e restos de vermes, agarrou meu braço com a mão livre e levantou-me
com firmeza.
- Está
vendo? É isso que queria deixar por conta das autoridades? Ia estuprar e matar
nós dois, sem hesitar. Se eu não tivesse agido rápido, ia nos pegar de surpresa,
e aí não teríamos chance, meu caro. Pode me agradecer, e considere-se um cara
de sorte.
Ainda sem
conseguir falar, olho praquela sujeira podre e fétida esparramada pelo piso,
que até há pouco ambulava em minha direção e parecia me encarar com curiosidade.
Fixo na sequência a barra ensanguentada a minha frente. Sinto minha garganta,
ainda latejando. Lembro das estranhas mortes em circunstâncias misteriosas
noticiadas pela TV. É, creio que Hygor está certo. Sou realmente um cara de
sorte.
conto intrigante meu caro
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