BRAZYU
O PAÍS DO PASSADO
A EPOPEIA DO RETROCESSO
Brazyu é uma saga de ficção passada no fictício Reino do Brazyu. Qualquer semelhança com lugares e pessoas reais é mera coincidência.
Parte 1504:
O CIDADÃO DE BEM
em
CUMPRINDO A META DO DIA
A Grande Empresa privatizada demitiu metade dos funcionários. Gestão de Custos. E o maior custo obviamente era o de pessoal. Sem perspectivas, os demitidos decidiram acampar em protesto na frente da sede da Grande Empresa.
Enquanto isso, o Cidadão de Bem sai do seu moderníssimo apartamento de dezoito metros quadrados para bater o sagrado ponto no Escritório.
Ao sair do apartamento já encontra um pedinte sentado no corredor. Diz não ter mais dinheiro pro aluguel, nem pra comer, já recebeu notificação de despejo, não sabe o que fazer a não ser pedir ajuda pelo prédio. O Cidadão de Bem lamenta, mas não tem como ajudar. Chega até a fila pro elevador. Durante horário de pico difícil conseguir vaga no apertado elevador que atende 50 apartamentos por andar.
Ao finalmente sair do prédio, encontra o tradicional pedinte de estimação do condomínio. Este, o Cidadão de Bem já está acostumado a ignorar todos os dias.
Leva alguns minutos pra atravessar a rua, devido ao trânsito incessante de carros. Quando um deles para pro embarque de alguém, é sua oportunidade de finalmente atravessar correndo. Entra no estacionamento particular onde deixa o seu precioso carro todos os dias, já que o prédio em que mora não tem garagem.
O Cidadão de Bem mora a 10 minutos de caminhada da estação de metrô. O prédio do Escritório fica ao lado do metrô, a apenas 4 estações dali. Mesmo assim vai de carro pro Escritório todos os dias. E sempre reclama que a gasolina está muito cara. Metade do salário mensal vai pra prestação do carro e eventuais manutenções. Mas não abre mão do carro. Afinal, o Cidadão de Bem é brazylero. E como todo brazylero, adora carro.
O Cidadão de Bem passa pela sede da Grande Empresa e vê as dezenas de pessoas acampadas, todas aquelas tendas e faixas e cartazes de protesto. Revolta-se com aquela poluição visual, não se aguenta, abaixa o vidro do seu carro do ano, prejudicando o conforto do ar condicionado e grita furioso: Vai trabalhar, bando de vagabundo!
Logo mais, trânsito completamente parado. Cidadão de Bem fica revoltado, não pode chegar atrasado ao Escritório. Mas trânsito continua imóvel. Cidadão de Bem não sabe por que o trânsito permanece totalmente parado, mas buzina sem parar.
Enquanto isso, o Novo Dytador passeava no seu Helicóptero-Caveirão quando recebe uma chamada de uatzap de um assessor:
-Milorde, um ônibus foi sequestrado na via expressa. Foi interceptado pela patrulha.
-Estou vendo daqui. O trânsito está todo parado.
-Os agentes tiveram que fechar uma pista.
-Isso é inaceitável. Tem que resolver logo.
-Os negociadores estão tentando contato com o sequestrador.
-Negociador é o caralho. Cadê o sniper?
-Está se posicionando…
-Ordena a ele pra atirar logo.
-Mas ele ainda não…
-Mas o que, porra? É pra atirar logo e abater os vagabundos! Tem que liberar o trânsito pro cidadão de bem poder ir trabalhar!
-Sim, milorde.
Assim foi feito. O ônibus foi metralhado e os sequestradores mortos, assim como alguns passageiros. O Novo Dytador considerou inevitável a morte de alguns passageiros: Não dá pra fazer omelete sem quebrar uns ovos. Já a morte dos sequestradores foi suicídio, conforme a nova legislação que aprovamos recentemente. Suicídio por policial.
Depois de horas, o Cidadão de Bem finalmente consegue chegar ao seu importante trabalho. Ao adentrar no Escritório, percebe a maioria dos colegas cochichando.
-Que foi?
-Você não viu no grupo?
-Não, não vi.
-Vê aí o grupo.
Cidadão de Bem busca desesperado o celular, pra ver ansioso o grupo no zap Colegas do Escritório. Ao desbloquear o celular: "Você poderá acessar logo após a publicidade". 5 minutos de comercial. Puta merda. Vai morrer de ansiedade. Deixa celular de lado e vai tomar uma água. Pega o aparelho de volta e a publicidade estava pausada em 4min57s. Ao olhar ela continua: 4min56s, 4min55s. Tinha esquecido dessa nova tecnologia leitora de retina dos aparelhos. O leitor de retina detecta se a pessoa está ou não olhando pra propaganda. Se não estiver, automaticamente pausa. Se quiser usar o celular, obrigatório olhar pra publicidade por todo o tempo. 4min50. 4min49. Puta merda. Melhor tomar o comprimido pra tranquilizar.
Então seu Chefe aparece e o chama. Diz que o Gerente Executivo quer falar com eles. O Cidadão de Bem sente certa euforia. Nunca participou de nenhuma reunião com o Gerente Executivo. O mês estava indo bem. Semana passada recebeu o feedback da avaliação de desempenho referente ao último ano e ficou empolgado pela ótima nota que recebeu. Fruto de seu trabalho duro. E agora uma reunião com o Gerente Executivo. Quem sabe seria designado para algum trabalho importante? Mais: quem sabe estaria sendo sondado para algum cargo gerencial? Sabe que seu dia vai chegar, seus professores na faculdade de administração sempre afirmaram categoricamente que quem se esforça é recompensado, cedo ou tarde.
Entra na opulenta sala, com patrióticos móveis de madeira de pau-brasil, cadeiras massageadoras forradas com couro de elefante encerado e tapetes de pele de panda importados. Um garçom traz água, suco, café, bolo e salgadinhos e deixa numa cômoda ao lado da grande mesa do Gerente Executivo. No outro lado da sala uma grande estante percorre toda a parede, mas nem um livro sequer repousa sobre ela. Apenas fotos dos eventos corporativos que o Gerente Executivo participou, troféus e medalhas de executivo destaque, diplomas de cursos como "Cortando Custos e Gerando Valor para os Acionistas" e "Liderando pessoas para a Vitória", e brindes e recordações das muitas viagens realizadas.
O Chefe do Cidadão de Bem cumprimenta o Gerente Executivo como se fossem amigos de infância, melhor amigo da vida. Gerente Executivo conta uma piada de trabalho e gargalha com o Chefe. Cidadão de Bem não entendeu absolutamente nada da piada, mas sorri também pra parecer simpático.
Então o Gerente Executivo cumprimenta amistoso o Cidadão de Bem e começa a discursar sobre os novos tempos que a Empresa está passando. A crise não está fácil, todos precisam se doar e se esforçar para atingir os objetivos corporativos, pois se a Empresa não conseguir resultados, muita gente pode ser prejudicada, muita gente pode perder o emprego, e blá, e blé, e blí, e bló, o discurso continua nessa toada por uma eternidade, o Cidadão de Bem se esforça bravamente para não cochilar na frente dele, meneando a cabeça para confirmar que está entendendo e soltando um aham de vez em quando.
Até que sua atenção é despertada quando o Gerente Executivo comenta sobre metas e avaliação de desempenho. "Vi que você superou, e muito, as metas do último período de avaliação. Sua nota foi 130%". O Cidadão de Bem abre um discreto e orgulhoso sorriso. "Espera mesmo que eu acredite nisso? 130% da meta estipulada? É óbvio que essa meta foi fácil demais!" O sorriso murcha. "Mas o seu caso não foi o único. A nota média da nossa Gerência Executiva foi 108. Ou seja, em média, as pessoas atingiram 108% das suas metas. Tenho estatísticas que provam que não é normal um desempenho médio tão alto. Estas notas terão que ser revistas, pois não é essa a lógica de mercado. Nos nossos concorrentes não existem avaliações de desempenho tão generosas. É um claro sinal de que nós temos que aprender a criar metas. As metas precisam ser desafiadoras. Isso vai ter que mudar."
Hesitante, o Cidadão de Bem olha pro seu Chefe, que permanece impassível. Pensa em retrucar, afinal fez um excelente trabalho na sua visão, realmente superou sua meta, a nota foi justa. Abriu mão de muita coisa para se dedicar ao trabalho, faltou a compromissos, abandonou a caminhada diária, quase não fez sexo com a esposa, quase não deu atenção aos filhos, vendeu as férias. Contudo, está diante do Gerente Executivo, chefe do seu Chefe. Não se atreve a rebater. O seu Chefe deveria dizer algo, mas se ele está aceitando, então o que pode fazer senão aceitar também? "O RH já está trabalhando em uma nova metodologia de desenvolvimento de metas e desempenho individual e logo passaremos mais informações."
O Gerente Executivo então encerra e diz que o Cidadão de Bem está dispensado, foi um prazer conhecê-lo e pode se retirar, ele e o Chefe do Cidadão de Bem tem outra reunião agora.
Cidadão de Bem sai da adornada sala e para no corredor. Apesar da porta fechada, volta a ouvir gargalhadas do seu Chefe e do Gerente Executivo. Por um momento, não sabe bem pra onde ir, o que fazer agora. Mas foi só por um momento. Tem que retornar pro seu lugar e sua importante rotina.
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