(Por Wagner Nyhyw)
Dois dois na mão. Mesmo assim
blefo:
Aposto tudo.
Aceito.
Ele mostra a mão: dois reis.
Viro primeiramente três cartas do
monte sobre a mesa. Rei,rei,dois.
Há, quadra de reis. Essa já era,
meu amigo.
Viro mais duas: dois, dois.
Dois, dois, dois, dois, dois.
Minha quina ganha da sua quadra.
Droga, que azar. Peraí... quina?
Mas que porra é essa? Ei, tem dois dois de copas nesse baralho. Que porra é
essa, porra?
Sei lá, não conferiu o baralho
não?
O baralho é seu, caralho. Tá todo
avacalhado.
Cê tinha que ter contado as
cartas.
Eu? Você é que tinha que trazer
um baralho acertado. Aê, vamo ter que anular as partidas de hoje.
O quê? Tudo que eu ganhei docês?
De jeito nenhum.
Claro que é, baralho com carta
repetida, vai saber se tá faltando outras, sem chance.
Ganhei na boa, vem com bucetisse
não. Pode ir passando a grana.
Porra, vamo parar com essa
barulheira. Assim ninguém dorme.
Valva chega de camisola na sala
com o pequeno no colo.
Valva tem essa mania de ficar na
frente dos meus amigos com essas camisolas semi-transparentes. Já falei com
ela, que merda. Porra de mulher que não me respeita.
Zulmiro cresce o olho, filho da
puta.
Boa noite, dona Valva.
O pequeno só observa tudo, com os
olhos esbugalhados. Esse é cabra macho. Vai ser durão quando crescer. Nunca
chora. Quando ele nasceu, já abriu os olhos, encarou a luz, sem frescura, quis
nem saber. Desde o parto, encarou o mundo de olhos abertos e sem chorar. Ê orgulho
que eu tenho desse porrinha.
Cês ficam nessa gritaria, olha
aí. O Bonifácio não dorme.
Tá bom, saco. A gente vai dar uma
volta na rua.
Vê se não arruma confusão. Tenho
mais dinheiro pra fiança não.
Tá. Daqui a pouco eu volto. Bora,
moçada.
Comprar umas pedra?
Demorou.
Antes vamo lá no Trúcio. Tô a
fim de beber uma grapa.
Conheço um cara que tá vendendo
um bagulho novo.
Bagulho novo? Por que não disse
antes, porra?
Tô falando agora, carai!
Como é esse bagulho?
Sei não, acho que um novo tipo de
erva.
Bora lá conferir.
E o Trúcio? Não vamos passar lá?
Foda-se o Trúcio. Quero ver esse
bagulho.
Vamo indo então, esse chegado
mora no São Judas.
Porra, longe pra carai.
Vamo ter que pegar o vinte e sete
cinquenta e cinco.
Mofar no ponto, a essa hora.
E se a gente pegar o carro do seu
vizinho emprestado?
De novo? Porra, eu disse pra ele
que não íamos mais fazer isso. Ele não vai mais perdoar se descobrir.
Tenho um vizinho, o ... esqueci o
nome, que não tem garagem, então deixa o carro na rua mesmo. Como ele nunca sai
à noite, de vez em quando a gente pega então o carro dele emprestado. Na última
vez ele percebeu e chamou a polícia. Deu uma trabalheira da porra pra explicar,
mas ele nos perdoou. Achou que tinha sido só naquela vez. Eu não queria correr risco
de encrenca com ele. Mas lembro que é por uma boa causa.
Tá bom, manda ver lá, Palomo.
Palomo é mecânico, trabalhou anos
em oficinas, fábricas e o caralho antes de virar vagabundo, ou como eu prefiro
dizer, livre. Faz ligação direta em um minuto, além de conseguir abrir porta de
carro com canivete sem acionar o alarme. Ele diz que não funciona com todos os
carros, mas o desse meu vizinho dá certo. Descemos a rua, o carango tá lá, como
de costume, é um gol, eu acho, ou corsa ou Passat sei lá, pra mim carro é tudo
a mesma merda. De cor cinza e meio fudido, vários amassados, e só dois feitos
pela gente. Esse meu vizinho não é muito cuidadoso, ainda bem, se a gente não
fizer merda muito grande ele nem percebe. Num instante Palomo faz o serviço e
tamos os quatro lá a caminho de São Judas.
Alguém lembrou de trazer cerveja?
Não.
Merda.
Pra passar o tempo eu e Mafaldo
ficamos treinando golpes de judô no banco traseiro. O desafio é quem conseguirá
dar um wazari no outro naquele espaço apertado. Lionaidas fica como juiz. Logo
de cara consigo erguê-lo e tento girá-lo sobre meu ombro esquerdo, mas as
pernas dele acabam batendo na cabeça de Palomo, que perde a direção e cai
encima de Lionaidas no banco do carona.
Mas que merda...?
O carro derrapa, cruza a rua e
para cruzado no meio fio. Ainda bem que àquela hora não havia nenhum outro
carro passando. Por isso digo: se forem dirigir, dirijam apenas à noite.
Logo nos recompomos e a viagem
continua. De repente, enquanto Mafaldo ainda estava distraído, tento um golpe
rápido, aplico um soto-makikomi e consigo girá-lo, dessa vez sobre meu
ombro direito para não correr o risco de acertar o motorista. Empurro meu corpo
junto ao banco do carona para ganhar mais espaço, mas Mafaldo tem pernas
grandes e acaba batendo o pé no vidro da porta, interrompendo o movimento. A
marca preta da sola do tênis fica fortemente marcada no vidro, como uma pegada
de alguém que caminhou ali.
Porra, Mafaldo, pisou na bosta?
Olha que sujão no vidro. Limpa aí.
Limpar com o que? Só se for com a
sua cara.
O desafio passa então a ser quem
consegue esfregar a cara do outro naquela pegada. Em certo momento, consegui
prensar o corpo dele junto ao vidro e colocar o peso do meu encima e estava
quase botando a cara dele lá, mas quando freamos pra passar por uma lombada,
conseguiu me jogar pra trás. Meu cotovelo acaba acertando em cheio a cabeça do
Palomo, de novo. Dessa vez o impacto não é suficiente pra desgovernar o carro,
mesmo assim ele freia totalmente.
Mas que caralho! Eu não dirijo
mais. Vão tomar no cu vocês. Parecem crianças.
Tá bom, deixa que eu dirijo.
Todos caímos na gargalhada.
Palomo é o único que sabe dirigir.
Sempre fico pensando se não passo
de uma criança que não quer crescer. Quando casei e tive filhos, minha mãe
achou que eu ia endireitar. Endireitar? Quer dizer, virar um capacho?, eu
perguntava a ela. Não. Eu não. Serei sempre o esquerdo, o errado, o torto,
aquele que as pessoas mostram aos filhos e dizem “é isso que você quer ser
quando crescer? Não? Então estude e trabalhe muito”.
Palomo ainda fica reclamando
alguns minutos, mas então religa o carro e seguimos viagem.
São Judas é um bairro grande. Mesmo
depois de chegarmos nele, ainda levamos quinze minutos pra chegar na casa do
sujeito.
Casa de muros grandes e um grande
portão. Lionaidas toca a campainha. Como ninguém atende nos próximos segundos,
começa a esmurrar e chutar o portão.
Será que não tem ninguém?
Gritamos e urramos como se
estivéssemos morrendo. Finalmente, o portão se abre. Um careca de óculos,
piercings na cara e roupas caseiras rasgadas atende puto:
Que porra é essa, Lionaidas? Que
bagunça é essa no meu portão? Sabe que horas são?
Alguém aí sabe as horas?
Ninguém sabia. Nenhum de nós
usava relógio. Nem despertador. Nunca.
Porra, cara, trouxe um monte de
cliente pra você, todo mundo querendo aquela sua parada.
Tá bom, tudo bem, entra aí.
Deram sorte, ainda tenho algumas.
Entramos em uma sala bem
espaçosa, com um conjunto bonitão de sofás, três partes, um de três lugares,
outros dois de dois lugares. Sempre quis ter um sofá macio desses.
Lionaidas e o careca adentram o
corredor enquanto nós três sentamos.
Podíamos roubar esses sofás,
hein? A Valva ia ficar feliz.
Para, cara, o sujeito é chegado
do Lio.
É, tem razão, ia pegar mal.
Junto à parede uma estante
gigantesca, lotada de livros. Um dia quero ter uma estante assim também, cheia
de livros. Tento ler os títulos nas lombadas, mas está longe, e não vou
levantar desse sofá tão cedo. A maioria parecem livros bem antigos. Mafaldo e
Palomo conversam sobre qualquer merda que não presto atenção. Gosto de livros
velhos. Amanhã vou naquele sebo da Rua dos Crentes e tento roubar um.
Logo eles voltam, o careca
carregando uma tigela e Lionaidas com um sorrisão abobalhado.
Vocês vão pirar com isso aqui.
Coloca a tigela sobre a mesinha
central, todos nos debruçamos sobre ela. Está cheia de pequenas bolotas.
Parecem frutas, vermelhas, como pequenas maças, mas com tamanho e consistência
de morangos.
Viemos aqui pra isso? Pra comer
amoras?
Calma. Come um que vocês vão ver.
Nunca experimentaram nada igual. Mas prestem atenção, comam apenas um por
enquanto. Isso é mais forte do que parece e...
Pego logo cinco e engulo quase
sem mastigar.
Mas que porra, eu falei só um,
caralho.
Acho que apaguei imediatamente.
Estou deitado na grama. Que delícia a grama sob meu corpo. Rolo sobre ela. Uma
sensação de alívio, de libertação. Uma brisa suave. Um sol ameno. Nem frio nem
calor. Grama e céu se fundem no infinito. Contemplo uma imensidão de paz e
perfeição. Levanto e começo a correr nu pelo campo. Se eu fosse poeta,
declamaria um monte de palavras bonitas. Ouço uma doce voz a me chamar. Ou
seria o cantarolar da brisa? Porra, não sou poeta, mas fui tomado por estranha inspiração. É uma mulher. Uma linda mulher que se
aproxima e assovia meu nome. Ela também está nua e corre para mim estendendo a
mão. Pega minha mão e corremos juntos pelo campo. Ela não tem asas mas sei que
é um anjo. Nunca acreditei em paraíso ou anjos, mas agora eu sei, eu vejo. Não
pisamos na grama e flores, mas flutuamos sobre elas. Agora tudo faz sentido. Percebo
que toda a minha vida errante teve um sentido. Este momento.
Minha visão embaça, um vulto
disforme, alguém está sobre mim. Um careca, os outros parecem Lionaidas e
Palomo e... estão me sacudindo, gritando. O careca me dá um tapa na cara.
Que isso, fidaputa?
Ele despertou. Mas...
Escuro. Silêncio e vazio. Abro os
olhos e estou voando. Onde está ela? Talvez em toda parte. Estou imerso em
pleno céu, um misto azul, cinzento, vermelho, alaranjado, como se todos os
tempos e estações estivessem eclodindo ao mesmo tempo, uma fusão entre alvorecer,
crepúsculo, dia, noite, nuvens, sol, verão, inverno. Estou voando, à minha
frente um grupo de pássaros, acho que são gaivotas, fluindo como uma seta em
uma só direção. Acho que estão indo pro sul. Não sei porque acho isso.
Sul de onde? Sul de todos os lugares. Pássaros são espertos, sabem pra onde ir.
Ao contrário dos humanos. Estou seguindo as gaivotas rumo ao sul. Todas
alinhadas, formando um semi-círculo. As nuvens formam construções lindas,
voamos na direção delas, que se abrem e nos deixam passar, como se fossem os
portões da salvação.
Ela está de volta, voando como
uma mulher-gaivota. Desenvolta, dá cambalhotas no ar. Se atira para baixo como
um raio, depois dispara para cima. Seu voo é uma dança, dá saltos, mergulhos,
rodopios. Está em todo lugar, controla o espaço como se houvesse domado o céu.
Sigo seu exemplo, solto meu corpo. Furo as nuvens, corto o azul. Tenho a
imensidão ao meu dispor, estou ao dispor da imensidão. Ela se aproxima. Estende
a mão, oferecendo um pequeno objeto. Parece uma fruta, vermelha e saborosa.
Aceito sem hesitar e a jogo em minha boca.
Sinto um gosto estranho, algo que
vai do extremo doce ao extremo azedo sem parar.
Está tudo meio escuro, alguém do
meu lado, acho que está de jaleco, estou em um pequeno ambiente, fechado,
sacolejando. Quero voltar.
Novamente o céu, mas não vejo
mais a garota, e as gaivotas... estão tão longe... apenas pontos no sol...
Estou caindo... Tudo passa rápido
demais... Não consigo voar...
Um rosto. Muito feio.
Mafaldo?
Acordou, hein? Porra, achei que
cê ia morrer.
Onde eu tou? É sua casa?
Que casa, tá no hospital. Sua
mulher foi almoçar, deve tá voltando. Você... mal... corremos pra... está
aqui... todos... preocupados...
Blá blá blábláblá. Não escuto,
não presto atenção.
Cara, eu estava num lugar
incrível.
Eu sei, mas...
Blá blabláblá. Esse lugar é muito
feio. Não quero ficar aqui.
Tem mais daquela fruta?
Claro que tenho, não ando mais
sem ela.
Então dá uma aí, antes da Valva
voltar.
Tá maluco? Quase morreu comendo
isso.
Dá logo, caralho!!!
Vou te dar só um pedaço.
Dessa vez não engulo direto.
mastigo bem. Saboreio. Só um pedaço é o suficiente.
Ahhh.
Planando sobre um mar infinito.
Ao longe, gaivotas se fundem com o poente, parece um quadro, irretocável.
Preciso acelerar e me juntar a elas de novo. Mas percebo que não preciso fazer
nenhum esforço. Apenas solto o corpo e a brisa me carrega de encontro à turba.
Todos alinhados. Perfeita sintonia.
Ela reaparece, novamente planando
ao meu lado. Perfeita.
Algo aparece em sua mão. Uma
pequena fruta, vermelha. Ela a mordisca suavemente e me oferece com um sorriso irresistível.
Mas eu recuso. Não quero mais
sair de mim. Quero manter a lucidez e viver o real.
Continuo firme voando para o sul.